Wildlings: uma montanha de utopias (conjuntas) na serra do Açor

Deixaram uma vida que lhes “venderam como boa e, afinal, não era”. Agora, há uma geração a criar a sua própria utopia, nos vales da serra do Açor. Aprendem e querem ensinar através da experiência: “Porque, até pores as mãos na terra, não sabes nada”. Os Wildlings querem ser uma comunidade colaborativa num território onde, “para mudar alguma coisa”, têm “de ser alguns e fortes”.

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Ao chegarem a Relvas, disse-nos Guida Marques, apitem. Telefonar de nada serve na aldeia em Arganil onde nem o 112 chama. “Eu vivo aqui”, escreveu na mensagem com as coordenadas do Google Maps. Foi um mero gesto logístico, mas, ainda a subir a serra do Açor, a declaração leu-se como um manifesto, palavra que a arquitecta de 34 anos leva tatuada nas costas.

“Tornei-me arquitecta para fazer casas. E não umas casas quaisquer, mas casas de sonhos, de uma vida inteira. Casas-abrigo, casas independentes, casas comunitárias, casas antigas, casas de memória e casas de futuro”, escreveu, ainda antes de o confinamento acrescentar novos valores ao conceito de casa. “Quando comecei a fazer este projecto e a vir aqui mais vezes, pensei logo que dificilmente não viria aqui parar.”

Está sentada, sem tentar fugir do sol, num banco em frente à moradia em xisto da avó materna, que reconstruiu e onde faz de anfitriã desde 2016. Ao lado, mais tímida, com uma voluptuosa videira a fazer-se passar por varanda, aguarda aquela que virá — “finalmente”, suspira — a ser a sua casa. Uma mistura de todas que descreveu acima. “Nós temos uma expressão que dizemos aos jovens que vêm para cá morar”, ri-se, antes de perguntar: “De que é que vens a fugir? Na verdade, vimos a fugir. Mas vimos a fugir de uma vida que nos disseram que era boa e que, afinal, não era.”

Chegamos à aldeia-fascínio de Guida Marques depois de trocar emails e chamadas telefónicas com Lynn Mylou. A holandesa que vive em Arganil é a responsável por juntar os Wildlings, uma comunidade colaborativa de jovens de várias nacionalidades que se esforça por incentivar e capacitar outros para viverem na região do Pinhal Interior, no Centro de Portugal — uma forma de vida alternativa que também eles reaprendem todos os dias.

“É uma decisão muito difícil, vir para aqui sozinha”, conta a arquitecta nascida em Coimbra. O plano nunca foi despedir-se do atelier de arquitectura social em Lisboa e mudar-se, sozinha e aos 32 anos, para uma aldeia na montanha com pouco mais de 20 habitantes permanentes. Ao mesmo tempo, o desejo foi sempre esse. “Nunca pensei vir tão cedo, porque não pensei ter uma estabilidade económica que me permitisse estar cá. Achei sempre que viria mais tarde, com um pé-de-meia”, conta. Ter trabalho na área de formação fixou-a. Nós achamos sempre que é muito difícil, os nossos pais dizem-nos sempre que é impossível. Mas tinha de ser, sempre quis. A partir do momento em que tive trabalho cá, não havia razão nenhuma para não estar aqui.”

Não deixou a individualidade de uma capital a achar que iria encontrar, na aldeia, uma comunidade de braços abertos para ela. Antes, veio para “criar comunidade”, o que Guida define como um “conjunto de pessoas que se reconhecem nas mesmas ideias e se entreajudam”. “Foi o que começou a desaparecer nestas aldeias quando as pessoas foram para a cidade e uma coisa que se chama dinheiro e a capacidade económica começaram a entrar no meio disto tudo. E, de repente, quem tinha dinheiro começou a não precisar de ninguém. Nós temos esta luta aqui.”

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A caminho de Relvas, aldeia em Arganil, no distrito de Coimbra. Teresa Pacheco Miranda

Não é a única causa dos migrantes que fizeram o percurso inverso dos pais e avós (ou inventaram um caminho totalmente novo num país desconhecido). A reflorestação da zona fustigada pelos fogos de 2017 e o combate aos eucaliptos, a espécie arbórea florestal mais autorizada em Portugal, são outras delas. “Deixámos as nossas privilegiadas vidas citadinas para trás, porque num mundo que está actualmente tão desequilibrado, essa zona de conforto já não era a certa para nós”, escreveram, num manifesto que atraiu a atenção de “dezenas de pessoas” que, como eles, querem “reocupar as aldeias abandonadas, os campos e as florestas”.

Um exemplo é um jovem português que, depois de ver a série documental e o livro que os Wildlings lançaram em 2o19, se prepara para passar dez dias no território, à procura de comprar uma propriedade. Não é caso único, garante Guida, que o vai ajudar. “Foi bom perceber que havia mais pessoas como eu. Que isto não era uma viagem solitária. Porque, de facto, para mudarmos alguma coisa nestes territórios, temos de ser alguns e fortes. E isso só se consegue tendo uma comunidade, por mais geograficamente distante que esteja.

Jovens, qualificados e, depois das chamas, com energia para recomeçar

Se tivesse de mapear os novos habitantes da serra, a arquitecta faria uma divisão entre os que como ela se instalaram próximo dos Cepos e os que se juntam nos vales de Benfeita, próximos da famosa fraga da Pena, uma queda de água de 19 metros em plena paisagem protegida da serra do Açor, rodeada de carvalhos-alvarinhos, medronheiros e castanheiros.

Muitos têm cursos superiores e vivem em tendas, yurts, caravanas, cabanas de madeira ou casas recuperadas a partir de ruínas de xisto perdidas no meio das montanhas. “Mas aqui é um lado muito português e somos quase todos solteiros”, descreve, “enquanto na Benfeita vivem muitas mais famílias estrangeiras”. “Também tive algum receio disso. Eu queria viver profundamente as tradições que aprendi dos meus avós e bisavós, por isso queria estar num lugar que não estivesse muito afectado por outras coisas. Faço um esforço por ir ter com eles uma vez por semana, por bem da minha sanidade mental, mas eu, por mim, ficava aqui sempre”, ri-se.

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Teresa Pacheco Miranda

Os dados do município e do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, referentes a 2019, mostram que desde 2015 o número de cidadãos estrangeiros residentes no concelho tem aumentado, passando de 309 para 585 em 2019. Vêm da Europa, mas também da África do Sul, Angola, Austrália, Bolívia, Cazaquistão, China, Cuba, Filipinas, Estados Unidos da América, Israel, Japão (a lista tem muitas outras geografias).

São alguns destes que se juntam para organizar jantares vegetarianos às sextas-feiras, noites de pizza em forno de lenha na aldeia preservada do Soito, em Góis, retiros, aulas de ioga semanais, ou microfones abertos numa esplanada em Benfeita, onde cada um mostra o que sabe fazer.

Queriam tentar sobreviver dependendo das suas habilidades ou de um sistema económico alternativo, que valorize o tempo e a comunidade, em vez do consumo e do crescimento. Procuravam deixar de “ver a natureza como um museu”, perder-lhe o medo, muitas vezes o nojo. Queriam aprender a cuidar da terra dos antepassados ou romper com a forma como foram criados. Gostavam de conseguir aperceber-se das mudanças que ocorrem todas as estações e sentir as alterações a cada ano mais rápidas, longe de escritórios climatizados onde todos os dias lhes pareciam iguais.

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Guida Marques, arquitecta de 34 anos, em frente à sua casa. "Em última instância, se não vier alguém mais novo do que eu, eu vou morrer aqui sozinha. Portanto, tenho de desenrascar-me." Teresa Pacheco Miranda

“O que todos partilhamos é este sentimento do regresso à natureza e de só termos o essencial. É isso que nós queremos. E ser livres. O mais independentes possível, não de relações, mas de um sistema económico que não nos serviu. Se quem vem para aqui não pensa assim, dificilmente vai conseguir”, avisa Guida Marques, sem hesitar. “A primeira coisa é decidir, perceber exactamente do que precisas para estares bem e isso é obviamente fazer contas no final do mês.”

Para ela, agora a enfiar um dedo na terra para verificar a secura de uma semana longe da horta, contente com as courgettes que leva para casa, não há melhor vida do que esta. “Sem dúvida, a minha geração é a geração da mudança. Também a nível laboral, porque já todos trabalhamos que nem escravos, em condições altamente precárias, e a maior parte de nós já decidiu que, para ganhar mal, trabalho por mim. Isso automaticamente muda o paradigma todo.”

Antónia, a serra da estrela companheira de todas as ocasiões, ficou do lado de fora da cerca da horta biológica. Além de ser um sonho tornado realidade num contexto que não envolve um apartamento minúsculo arrendando na cidade, a cadela de coleira cor-de-rosa tem também o dom de pousar as patas exactamente onde não deve. “Depois é não ter medo de todo o tipo de trabalho. Não estar à espera de um emprego, porque não é para isso que o interior serve.”

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O primeiro projecto local bateu-lhe à porta sem aviso. Um casal inglês passou pela aldeia de Relvas, viu a casa em pedra de vários andares que Guida reconstruiu para a família e perguntou quem a tinha feito. Ficou com o trabalho ali. Não teve ainda tempo para desenvolver o site de arquitectura que sempre imaginou, com fotografias cheias de luz. “Tem funcionado através do passa-palavra, só”, repara. “Sou das poucas por aqui e conhecia toda a gente. A verdade é que prefiro muito mais trabalhar sozinha.”

Muitos outros trabalhos de reconstrução chegaram por acasos menos felizes. Nos últimos meses, novos clientes queriam reconstruir a casa dos avós antevendo um segundo confinamento, outros pediram para alterar o projecto “porque finalmente perceberam o valor de uma varanda ou de um terraço”. “Depois, ainda continuo a fazer casas que arderam”, diz, agora muito séria. Os incêndios de Outubro de 2017 continuam muito presentes, e não ficaram só gravados nos pinheiros carbonizados, ao abandono. “Na verdade, este é o ano da regeneração. Não havia peixes nem se ouviam pássaros, continuava o rio cheio de cinzas”, conta, quase com os pés no rio Ceira.

Já o trauma dos habitantes, novos e velhos, não correu com a água. Esta é a principal razão para os projectos dos Wildlings não estarem a avançar na calendarização desejada. O projecto de reconstrução da responsável pelo movimento, também a cargo de Guida, é um dos que continuam a sofrer atrasos sucessivos nas licenças e apoios para avançar. Sem um ponto de abrigo, torna-se difícil ter a disponibilidade para criar e receber outros. “O projecto Wildlings vai receber uma transformação e uma direcção nova”, garante Lynn.

Pensar dia a dia, muito mais do que antes

No dia a seguir ao incêndio, Allison Ozero e Dave esperavam regressar à cabana de madeira onde viviam há seis meses. “O fogo não chegou aos Pardieiros”, descansaram-na, enquanto o marido ajudava a combater as chamas num outro lugar. Estavam enganados: as chamas chegaram ao vale e levaram tudo. “Vivíamos ali há meses, nem um ano. Talvez tenha sido por isso que ficámos. Sentimos que ainda não tínhamos feito o que viemos para aqui fazer. Ainda adoramos esta terra, esta paz e os nossos vizinhos. Não queríamos desistir”, pensa agora.

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O projecto de recuperação da casa de Allison Ozero também esteve a cargo de Guida Marques. Teresa Pacheco Miranda

À frente do alpendre da casa em xisto, o jardim voltou em força, mesmo sofrendo com o calor que se faz sentir. Olhar para trás, onde a floresta crescia e agora restam alguns eucaliptos, é menos esperançoso. “A cada ano, o clima tem-se alterado tanto que tem sido uma grande experiência de aprendizagem adaptarmo-nos, à medida que o tempo passa”, conta Allison.

As dificuldades de viver numa aldeia na periferia, no topo de uma montanha ou num vale dentro da própria montanha, também são diferentes. Eles deixaram a vida citadina e os empregos em grandes empresas de Amesterdão para construir a própria utopia: “Queríamos aprender a viver de forma auto-suficiente”, declara Allison. (Dave, o marido, e Skylar, a filha com quase três anos, não estavam em casa.) Produzir e apanhar a própria comida, não estarem ligados à rede pública de água ou electricidade, não dependerem de combustíveis fósseis, não precisarem de Internet. 

“É nisso que estamos a trabalhar, embora ache que nunca chegaremos lá”, admite. “Tínhamos este ideal utópico que poderíamos viver aqui e não precisar de nada, só fazendo alguns trabalhos temporários. Já percebemos que também não é assim que queremos viver.”

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Allison Ozero Teresa Pacheco Miranda

Entre eles estão instaurados sistemas de trocas mais ou menos formais, contava-nos Guida Marques, ainda em Relvas. “Se estiver instaurado este sistema de comunidade, mais até no sentido logístico de comida, por exemplo, o Michael (um jovem escocês que pastoreia um rebanho de cabras) tem queijo e eu tenho batatas, trocamos”, contava, uns quilómetros sempre pela serra atrás.

Mas não se pode chegar a um aeroporto e esperar que aceitem fruta em troca de um bilhete de avião para visitar a família. “Não vivemos num mundo onde toda a gente está em sintonia”, resume Allison, em Benfeita. “Mas é na mesma uma escolha. Há pessoas na área que viveram quase sem dinheiro, trocando bens, tempo e competências em vez de euros, mas, de forma a manter o contacto com as nossas famílias, nós escolhemos pagar por Internet e bilhetes de avião.”

É isso que querem mostrar a quem lhes envia mensagens a dizer querer fazer isto, mas “sem saber como começar. “Não é dizer que toda a gente se tem de mudar para aqui. Mas educar as pessoas sobre formas de fazer as coisas de maneira diferente e mostrar a beleza de estar em contacto com a natureza, de uma forma muito prática e sustentável”, diz.

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Allison Ozero Teresa Pacheco Miranda

Ali, o equilíbrio é o trabalho de todos os dias. É conseguido em conjunto uns com os outros e com o meio que os rodeia, mas tem formas muito diferentes entre todos e ajustes constantes. Ter espaço para procurar, livremente, a forma como cada um escolhe viver, gerir o casamento e criar os filhos, foi outra das razões que os levaram até ali, depois de um ano e meio a viajar por África do Sul e Ásia através de programas de WWOOF, uma plataforma online que divulga vagas de voluntariado em pequenas quintas biológicas por todo o mundo. Em Portugal, voluntariaram-se em Tábua, Coimbra, não longe de onde vivem (há por ali também quintas que recebem voluntários). 

“Juntarmo-nos a uma comunidade intencional era uma possibilidade. Mas depois, como éramos muito jovens, sentimos que ainda queríamos a nossa independência. E por isso é que mudarmo-nos para esta área era perfeito. Ainda somos parte de uma comunidade, mas não fazemos parte de uma comunidade intencional onde temos de fazer o que os nossos vizinhos fazem.” Allison acabou de chegar da aula de ioga semanal que lecciona, às terças-feiras: atirou o wrap com uma dentada para cima do balcão da cozinha, segundos antes de nos convidar a sentar e abandonar o almoço.

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Allison Ozero Teresa Pacheco Miranda

A partir de Pardieiros, o trilho do xisto de Benfeita passa pelo riacho que alimenta o jardim da família e pelas ruínas da aldeia abandonada que, ao redor deles e aos poucos, voltam a ser casa. A 20 minutos dali, floresce o projecto de ensino natural comunitário Folha Verde. Não podia ser mais diferente da escola dela. “Eu gosto da escola convencional, da universidade, sou muito pró-educação”, admite. O mestrado ensinou-a “a ser adaptável e a saber pesquisar, o que é fundamental mesmo neste contexto”, garante. “Também não seria capaz de trabalhar online sem ele”, diz, o que na pandemia se revelou uma forma de resiliência para muitos trabalhadores qualificados.

Perguntamos-lhe se sentia que tinha um impacto mais positivo a trabalhar com grandes empresas na área da sustentabilidade ou a criar uma família numa casa escondida num vale. “Passei por uma fase em que achei que não tinha sentido e era greenwashing”, diz. “Podes ver isto de dois lados diferentes: ao trabalhar com empresas, criava mudanças maiores, conseguia ver a nossa redução de energia ao longo do ano e pensava ‘isto é imenso’. Mas, se olhar para a forma como vivo aqui, estou a educar-me a mim, à minha filha, estamos a ajudar a educar outras pessoas numa abordagem a longo prazo de reduzir o nosso impacto. Se uma é maior do que a outra?” Ainda não tem resposta. Só reparou que tomava banho todos os dias de manhã antes do trabalho e agora espera pela noite, depois de regar a horta. 

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