A Benfeita está a recuperar um antigo lagar para criar um espaço de encontro
Após um ano difícil de incêndios, aldeia lança campanha de angariação de fundos para recuperar e transformar edifício que albergará projecto de educação para crianças e workshops de dança e ioga.
Assim que deixamos o alcatrão da estrada municipal dos arredores da Benfeita, uma aldeia de Arganil, em Coimbra, o declive acentuado e o caminho acidentado transformam o breve percurso numa tarefa habilidosa, mesmo com o auxílio da tracção de quatro rodas.
O destino é o fundo do vale, onde corre uma ribeira, acompanhada numa das margens por duas estruturas de xisto. Uma é a casa de Adrian Jennings, um inglês que para ali se mudou há cinco anos, outra é um antigo lagar que até este ano se encontrava em ruínas. Quase tudo o que rodeia os edifícios de aparência rústica foi consumido pelo fogo, em Outubro de 2017. O despontar de algum verde ainda não se sobrepõe às árvores ardidas mas, entre tudo o que se perdeu, os edifícios escaparam às chamas.
Essa foi uma das características que levaram a comunidade de cerca de 250 pessoas de várias nacionalidades que vive nas redondezas a aproveitar o que restava do antigo lagar para ali instalar um projecto alternativo com o nome Folha Verde. “Queríamos iniciar um projecto comunitário de educação nesta zona” mesmo antes do incêndio, explica ao PÚBLICO, Julia Herron, de 44 anos, que trocou o Sul britânico pelo interior português há sete anos.
Muitas pessoas perderam as casas
Quando diz “queríamos” Julia refere-se ao grupo de ingleses, holandeses, franceses, alemães e portugueses que habita a Benfeita e as aldeias circundantes, perto da Serra do Açor. Na verdade, o processo de intenções passou à prática ainda no início de Outubro de 2017, com o projecto educativo orientado para a sustentabilidade ambiental a arrancar em duas estruturas temporárias. Uma semana depois veio o incêndio, que destruiu o embrião do projecto e muito mais. “Depois tudo mudou. Muitas das pessoas envolvidas perderam as casas e os bens no fogo e as pessoas precisaram de algum tempo para reconstruir as suas vidas”, descreve Julia, que estima que o número de casas destruídas seja de cerca de 25.
Ao lado, Bárbara Sá, de 39 anos, que começou a construir a casa na região há oito anos, refere que no ano passado estavam a tentar encontrar outros espaços para instalar o projecto, dando o exemplo de duas quintas. Ambas arderam e “ficou tudo em águas de bacalhau”. Com a possibilidade de recuperar o lagar de Adrian, que o cedeu, a comunidade começou a trabalhar na sua reabilitação. “Alguns de nós sentimos o desejo de avançar com o projecto”, explica Jules, acrescentando também que esta é uma forma de avançar com as suas vidas depois de um evento traumático.
Para isso, a comunidade lançou uma campanha de angariação de fundos, com o objectivo de captar 12,5 mil euros. A recuperação, levada a cabo essencialmente por voluntários da comunidade, está a ser feita com recursos a materiais naturais, como a madeira que por estes dias abunda, e a argila que serve de reboco ao interior das paredes.
No entanto, há outros equipamentos de que o edifício necessita para que possa ser utilizado durante a estação mais rigorosa, numa zona em que as temperaturas levam os termómetros aos extremos no Inverno e Verão. É preciso isolar o tecto, comprar e instalar painéis solares, instalar sistemas eléctricos e de aquecimento, mas é também necessário adquirir equipamento para a cozinha comunitária que ocupa uma das divisões.
Lynn Mylou, cidadã holandesa que há um ano se estabeleceu na aldeia da Cerdeira (Arganil), depois de ter vivido em Nova Iorque e Amesterdão, explica a opção pela campanha de financiamento colectivo com o facto de o acesso aos fundos comunitários destinados às regiões afectadas pelos incêndios ser “muito complexo e difícil para os cidadãos normais ou pequenos projectos”. A hipótese de tentar reunir a quantia no seio da comunidade também ficou excluída: “onze meses depois do incêndio, muitos de nós ainda estamos à espera para saber se as nossas casas vão ser reconstruídas”.
Futuro sustentável
No interior do antigo lagar a aparência ainda é de estaleiro. A um canto da divisão maior, Floris e Miguel esforçam-se por posicionar o tronco de pinho que servirá de estrutura a umas escadas. Os degraus darão acesso ao que será a biblioteca. Julia Herron descreve que haverá também um espaço de estudo, um pequeno palco e um espaço com livros e brinquedos para crianças em idade pré-escolar.
Algumas das paredes já estão revestidas com a argila que vai secando e que convive com a fraga, a pedra xistosa na qual a casa assenta. As obras tiveram início há cerca de dois meses, mas ainda deve demorar até que terminem definitivamente.
Julia estima que a casa deverá estar em condições de começar a ser utilizada nos primeiros meses de 2019. O espaço exterior de perto de 500 metros quadrados também será replantado com árvores nativas e de fruto, explica Inês Moura, 37 anos, que mora na aldeia vizinha de Monte Frio.
Muitas das crianças da comunidade estão em regime de ensino doméstico, o que ajuda a explicar o projecto. Mas as famílias estão também a tentar arranjar uma forma de as juntar de forma mais regular. É para isso que serve o Folha Verde, mas também para que “as crianças possam aprender português, para ajudar à integração” refere Julia. Numa fase inicial, estão envolvidas cerca de 25 crianças dos 2 aos 12 anos.
Para além do uso escolar, “o espaço pode também ser utilizado para workshops para pessoas de todas as idades e outras actividades como ioga, dança, meditação”, descreve Julia Herron, acrescentando que são promovidos “muitos encontros sobre o planeamento para um futuro mais sustentável nesta zona”. A educação dos mais jovens é orientada nessa perspectiva de ecologia e de sustentabilidade ambiental.
Todos os dias há perto de seis voluntários da comunidade a trabalhar no antigo lagar. “É importante envolver todo o tipo de pessoas diferentes de diferentes locais”, menciona Robert Gough, carpinteiro britânico de 50 anos. A título de exemplo, Bárbara Sá acrescenta que receberam recentemente um tear, mecanismo complexo cuja montagem vai necessitar do auxílio de alguém entendido das aldeias ali à volta. As crianças também participam no processo de construção, menciona Julia, dando o caso da filha Rosa, de cinco anos, que ajudou a misturar a areia com a argila para fazer o reboco do interior das paredes.
Tal como os trabalhos em madeira no centro comunitário, também a mobília será construída aproveitamento das árvores queimadas. Bancos, cadeiras e mesas, mas também janelas e portas terão o mão de Robert. Do plano de obra faz também parte o melhoramento de acessos com passadiços e a estabilização de terrenos, para que o Inverno não traga com ele as enxurradas que a ausência de árvores e arbustos facilita.
As descrições de uma zona verde, de floresta ainda selvagem e de águas puras da montanha ajudam a dar uma ideia do cenário que atraiu quem ali se fixou. Quase um ano depois, as colinas da região continuam revestidas pelo que resta de pinheiros, eucaliptos e outras espécies.
O projecto do centro do vale da Benfeita implica um trabalho de recuperação, ajudando também a lidar com um ano severo. “Muitas pessoas perderam casas ou coisas que tinham. Sentimos a necessidade de nos juntarmos e de nos ajudarmos uns aos outros”, descreve Julia, para a seguir se referir ao projecto como uma “grande fonte de apoio e força” na comunidade.
“As pessoas ainda estão traumatizadas. Mas temos que fazer uma escolha, ou segues em frente ou vais fazer outra coisa”, diz Robert Gough. A casa que divide com Julia não ardeu, mas a oficina onde trabalhava sim, assim como as suas ferramentas e a madeira. “Ficar aqui é uma decisão arrojada. Especialmente porque pode acontecer outra vez”, afirma.