Manifestação por Bruno Candé: “Existe muita gente racista e é importante mostrar que estamos fartos”
Manifestantes juntaram-se no Largo de São Domingos, em Lisboa, contra o assassinato do actor Bruno Candé, no sábado, em pleno dia na Avenida de Moscavide. “É muito importante estarmos todos juntos”, diz a irmã Olga Araújo. Organização não tem dúvidas de que vale a pena sair à rua.
Olga Araújo, irmã do actor Bruno Candé, está sentada numa cadeira à porta do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Na quinta-feira, foi o funeral do actor assassinado em pleno dia na Avenida de Moscavide, também na capital, depois de tiros disparados alegadamente por um homem de 76 anos, imobilizado por duas pessoas depois do crime. Testemunhas ouviram o arguido gritar insultos racistas e a ameaçar de morte Bruno Candé três dias antes de o concretizar.
“Estou a ver que não são só os africanos a juntarem-se a esta causa. Está aqui toda a gente. É muito importante estarmos todos juntos. O meu pai é português, branco, a minha mãe é negra: não quero ódio, só queremos chamar a atenção para que tomem medidas para que isto não volte a acontecer e se faça justiça”, comenta ao PÚBLICO no início da manifestação sobre este momento, visivelmente emocionada.
À sua frente estão já centenas de pessoas que durante esta sexta-feira à tarde empunham cartazes. Cartazes com frases a reproduzir os insultos racistas que o homicida terá dito, cartazes a prestar solidariedade ao actor, cartazes a pedir justiça, cartazes a afirmar que “negras vidas importam”. Vários empunham uma fotografia do rosto do actor, também estampado em t-shirts.
À medida que a tarda avança, mais pessoas se vão juntando e formam uma massa humana. Há gente de várias faixas etárias e origens.
Parece difícil criar silêncio com tanta gente. Mas por vezes acontece nesta tarde, entre gritos vigorosos a pedir “justiça, justiça para Bruno Candé” ou simplesmente “Candé, Candé” .
Além de familiares e amigos do actor, e de várias pessoas do teatro, compareceram colegas da companhia onde Bruno Candé trabalhava desde 2011, a Casa Conveniente. Ao microfone, cercados por uma multidão, colegas da Casa Conveniente, comovidos, diziam: “Mataram a pessoa que nos dava fé e esperança”. Ao longo da noite foram passando vídeos de peças em que o actor entrou.
"Queremos igualdade"
Esta é a quarta vez que os movimentos contra o racismo saem à rua este ano em Portugal, depois da morte de Luís Giovanni, da agressão de Cláudia Simões, da morte de George Floyd nos Estados Unidos.
“É impensável que em 2020 ocorra um crime tão hediondo e é impensável que haja justificações. Existe muita gente racista e é importante mostrar que estamos fartos”, diz Ana Cardoso, 28 anos, assistente administrativa e uma das manifestantes que não pertence a nenhuma organização. “Não é justo que certas situações ocorram por causa da nossa cor de pele. Tenho situações de racismo, mas qualquer pessoa aqui tem e isso não devia ocorrer. E as pessoas à nossa volta dizem ‘mas’. Não há justificação para que se desrespeite o outro por causa de uma diferença.”
O crime chocou Eneida Andrade, 27 anos. “Somos negros e queremos igualdade”, afirma ao PÚBLICO, enquanto se ouvem em pano de fundo as intervenções no microfone. “Porque continuamos a ser perseguidos, odiados? Por isso estou aqui, a sociedade precisa de reflectir sobre isso. Não nos vamos calar. Temos que dar a voz e mostrar que não vamos pactuar com isso. Vamos lutar: ser negro é lutar, ser resiliente”, conclui.
Marcada para o Largo de São Domingos, em Lisboa, às 18h, a concentração foi organizada por colectivos anti-racistas e movimentos negros sob o chapéu O racismo matou de novo: justiça por Bruno Candé — como o SOS Racismo, a Afrolis, a Djass, a Consciência Negra, a Femafro, os núcleos anti-racistas do Porto e de Coimbra, INMUNE, entre outros.
Contra a “banalização do racismo”
Para Mamadou Ba, do SOS Racismo, um “homem negro foi morto por ser negro”. “Se há 25 anos um homem negro foi morto pela sua cor da pele [Alcindo Monteiro] à noite, em 2020 há homens negros que são mortos à luz do dia apenas por serem negros. Isto tem responsáveis. É a banalização do racismo, a naturalização do discurso do ódio. Mostra como o discurso de ódio tem consequências práticas na vida das pessoas.”
O dirigente, que tem estado por trás das mobilizações na rua contra o racismo há anos, não tem dúvidas de que vale a pena sair à rua: “Há dois anos uma manifestação convocada a um dia de semana, ao fim do dia, não teria metade das pessoas. Isto significa que vale a pena. Desde as movimentações por causa do que aconteceu no bairro da Jamaica [no Seixal] que o nível de mobilização tem vindo a crescer, a consciência colectiva tem vindo a ganhar espaço e a diversidade das pessoas que estão no terreno a lutar contra o racismo também.”
Outro dos organizadores, Yussef, do grupo Consciência Negra, também sublinha a importância de sair à rua: “É o espaço mais democrático para aqueles que diariamente são explorados e oprimidos. É uma forma de congregar forças, mostrar a nossa indignação e reivindicar justiça no sentido mais lato – lutar contra uma sociedade que cria homens como aquele [o suspeito do homicídio de Bruno Candé] e lutar por uma sociedade que crie homens como iguais.”
Outra das entidades que faz parte da organização, a Djass, diz que “muita gente acha que o racismo não existe” e por isso a presidente, Evalina Dias, refere: “É importante que as pessoas anti-racistas venham dizer não a este tipo de crimes. A sociedade portuguesa não pode ter racistas, pessoas a matar outras por causa da cor da pele.” Destaca a importância de estarem haver “muitos brancos” entre os manifestantes. “Mostra que estão connosco na luta. Não são só os afrodescendentes e africanos portugueses a lutar, é importante a população branca portuguesa perceber que o racismo existe e que pode fazer alguma coisa.”
A organização estima que foram ao protesto entre três a quatro mil pessoas, a PSP estimou cerca de mil pessoas às 20h no local.
Além de Lisboa, várias manifestações foram marcadas para esta sexta-feira em Coimbra e Beja; no sábado, estão previstos protestos em Aveiro, Braga, Évora, Faro, Guimarães, Porto e Viseu.
A Polícia Judiciária está a investigar o caso e não descarta a possibilidade de ter existido motivação racista no crime.