Da filha de Karl Marx a Frances McDormand, eis Veneza a ver se o cinema começa

Foi anunciada esta manhã a selecção possível, em ano de pandemia, para o primeiro grande festival de cinema a realizar-se de forma física. Na competição oficial, quatro filmes italianos, um dos poucos franceses que não foram adiados, os novos de Amos Gitai, Kornél Mundruczó ou Andrei Konchalovsky... a componente simbólica impõe-se a tudo, sem desprimor para o que pode haver de intrigante a descobrir este ano.

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Miss Marx, de Susanna Nicchiarelli, biopic sobre a filha mais nova de Karl Marx
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Framces McDormand em Nomadland, de Chloé Zhao
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Notturno de Gianfranco Rosi, o resultado de dois anos a filmar na Síria

Quatro filmes italianos em competição, entre os quais Miss Marx, de Susanna Nicchiarelli (outro biopic, depois do belíssimo Nico, 1988, desta vez sobre a filha mais nova de Karl Marx), Notturno de Gianfranco Rosi, o resultado de dois anos a filmar na Síria pelo vencedor do Leão de Ouro de Veneza de 2013 com o documentário Sacro Gra), ou Le Sorelle Macaluso, da actriz e encenadora Emma Dante (um dos filmes mais bonitos de Veneza 2013 era dela: Via Castellana Bandiera). Mais: um “dos poucos filmes franceses” que não foram adiados pela pandemia da covid-19, Amants, de Nicole Garcia, ou os nov0s de Amos Gitai, Kornél Mundruczó (Pieces of a Woman, o primeiro em língua inglesa do realizador húngaro, com Shia LaBeouf, Ellen Burstyn e Bennie Safdie) ou Andrei Konchalovsky (Dear Comrades, o regresso à competição de Veneza depois de dois Leões de Prata, em 2014 e 2016, para, respectivamente, The Postman’s White Nights e Paradise). 

Entre estes filmes se disputará a competição da 77.ª edição do Festival de Veneza, cuja selecção foi apresentada esta manhã. Enquanto apresentava o programa desta que será a primeira edição física de um grande festival de cinema desde que a covid-19 domina o mundo, Alberto Barbera, o director do festival, ainda conseguiu falar em Óscares, tema recorrente nos últimos anos como pedra de toque do Lido, referindo-se a Nomadland, de Chloé Zhao, cineasta americana nascida em Pequim (no elenco, Frances McDormand e David Strathaim). Mas não está tudo igual ao habitual, nem estarão os Óscares. A festa de Hollywood no Lido, espectáculo dos últimos anos até no palmarés (no ano passado, Joker...), não tem hipóteses de se repetir. Há meses, defendendo que o festival seria físico, Barbera assumiu que tinha de ser talvez mais europeu do que americano, se calhar com uma componente local mais assumida também. Teria de ser “experimental”, porque muitas coisas vão acontecer pela primeira vez, desde logo na gestão do dia-a-dia das sessões, do distanciamento social entre jornalistas, convidados e público em geral, com a utilização de máscaras e medições de temperatura, e de algumas conferências de imprensa que serão virtuais porque as equipas dos filmes não poderão ou não quererão viajar.

Há menos filmes, haverá menos jornalistas, certamente menos estrelas e menos espectáculo na passadeira vermelha (que em Veneza, aliás, é muito mais familiar do que em Cannes). Mas é a primeira vez que um grande festival de cinema arrisca acontecer no meio da pandemia, e numa altura em que o Verão começa a dar lugar ao Outono. A componente simbólica é irrecusável: para ver se o cinema finalmente começa. E mesmo que se perceba que esta é a selecção possível, aparecendo por isso cineastas que estão pela primeira vez em concurso no festival e continuando ausentes outros que, consumado o cancelamento de Cannes 2020, preferem ficar à espera da Croisette em 2021, onde vão obviamente compor um bouquet mais espectacular, é em nome desse “para ver se o cinema começa” que se deve suspender qualquer descrença e optar por acreditar no que pode haver de intrigante e a descobrir nesta competição oficial. Que junta ainda os nomes de Michel Franco, Kiyoshi Kurosawa, Chaitana Tamhane, Majid Majidi, Mona Fastvold (o segundo filme da mulher de Brady Corbet, realizador que Veneza tem promovido) ou, do Azerbaijão, Hilal Baydarov, com In Between Dying, que Barbera sinalizou de forma especial, agradecendo a Carlos Reygadas a sugestão. O júri será presidido por Cate Blanchett.

Fora de concurso, Quentin Dupieux, Ann Hui (destinatária de um dos Leões de Ouro à carreira, apresenta Love After Love) ou Danielle Luchetti (Lacci é o filme de abertura, tal como é italiano o do encerramento, Lasciame Andare, de Stefano Mordini), Abel Ferrara (Sportin’ Life), Frederick Wiseman (City Hall) ou Hopper/Welles, um encontro/entrevista entre Dennis Hopper e Orson Welles enquanto Hopper filmava o seu espectacular falhanço The Last Movie (1971). A partir de seis horas de material que a montagem reduziu a duas horas, Veneza regressa, dois anos depois da apresentação do restauro de The Other Side of the Wind, de Welles, ao património como acontecimento.

Na secção Horizontes, que também é competitiva, mas é paralela à competição oficial, com júri autónomo, e dedicada à descoberta do novo cinema – onde em 2016 Nuno Lopes teve um prémio de interpretação por São Jorge –​, estão as duas presenças portuguesas: a longa-metragem Listen, de Ana Rocha de Sousa, 41 anos, formada pela London Film School, e a curta The Shift, de Laura Carreira, 26 anos, a viver em Edimburgo. 

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