Contra barragens, pelos “santuários” do Douro: o SOS dos investigadores

Grupo de ambientalistas e investigadores fizeram caracterização inédita do Douro e estudaram os impactos das barragens neste e noutros rios. Perda de biodiversidade está em curso e é “urgente” agir, avisam. Das 1200 barreiras da bacia do Douro, 25% estão abandonadas ou obsoletas

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Paulo Pimenta

Quando em 2018 o consórcio Rede Douro Vivo, com ambientalistas e investigadores de várias universidades, se debruçou sobre o estudo da maior bacia da Península Ibérica, encontrou um Douro por caracterizar, desconhecendo-se o estado dos habitats e da biodiversidade e o número e estado das barragens existentes. “Para os Governos não tem sido uma prioridade conhecer os impactos acumulados da intervenção humana no território”, aponta Ricardo Próspero, do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), entidade coordenadora do estudo. Esse “perfil” do Douro está agora completo e traz preocupações e réstias de esperança: os investigadores descobriram que ainda existem “santuários” de biodiversidade no lado português da bacia, sobretudo nos rios Tua, Arda, Côa e Paiva, mas alertam para a “urgência” da sua protecção. Eliminar parte das barragens é uma das sugestões.

As conclusões do estudo centrado no Douro são válidas para barragens de outros rios e a mensagem é clara: o seccionamento destes cursos de água tem “custos severos naquilo que é a função de um rio”, aponta um resumo do estudo. A redução do tamanho das praias e uma maior erosão da costa e a diminuição da disponibilidade de nutrientes para as espécies que vivem na foz dos rios e mesmo em alto mar são efeitos directos da existência dessas barreiras. Mas há mais: “Tem um impacto grave na biodiversidade” e já levou mesmo à “extinção de espécies como o esturjão no rio Douro”. As actividades económicas de populações locais ficam também em risco. “É urgente tomar medidas para proteger os habitats que ainda sobrevivem”, indicou Ricardo Próspero.

Se os “santuários” encontrados – algo já inexistente no lado espanhol do rio, onde a agricultura é muito intensiva, apontou Duarte Gonçalves da Universidade do Porto – são uma boa notícia, é verdade que manter as espécies nativas exige outras medidas. “Se não houver acção por parte das entidades responsáveis e continuarmos a aumentar o número de barragens e a aumentar a pressão sobre os recursos hídricos, naturalmente o estado em que estas secções do rio estarão dentro de um par de décadas será muito mais similar àquele que observamos no lado espanhol.”

Rejeitar novas, retirar velhas

As associações ambientalistas ANP/WWF e GEOTA e investigadores das universidades do Porto, Coimbra, Nova de Lisboa, Trás-os-Montes e Alto Douro e Instituto Politécnico de Bragança concluíram que, só no lado português da bacia, onde habitam mais de 1 milhão e 900 mil pessoas, a maior parte na Área Metropolitana do Porto, existem 57 grandes barragens e um total de 1200 barreiras que fragmentam o rio. Destas, cerca de 25% estão abandonadas ou obsoletas. “Remover barreiras beneficia a biodiversidade de forma praticamente imediata”, afirmou Ricardo Próspero, acrescentando: “É preciso rejeitar a construção de novas barragens e remover barreiras obsoletas.”

Rui Cortes, professor catedrático na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), quis levar ao debate o Plano Nacional de Barragens para pôr o dedo noutra ferida: esse programa “não teve em consideração os efeitos da emissão de gases de estufa”, afirmou. “As emissões foram consideradas zero [no Tâmega], o que é absolutamente falso. É preciso considerar que a degradação da qualidade da água vai levar a emissões de gases de efeitos de estufa. Tenho chamado a atenção da EDP para a necessidade de monitorizar os gases de efeito de estufa.”

Membro do Conselho Nacional da Água, Rui Cortes chegou a elaborar, a pedido do Ministério do Ambiente, um estudo sobre as barragens que poderiam ser removidas. E o que saiu daí? “Esse estudo serviu para mostrar, na altura da construção das novas barragens do Tâmega, que o Ministério do Ambiente estava preocupado com essa questão. Na prática, o estudo ficou na gaveta”, lamentou, esperando que, desta vez, os dados apresentados sirvam, “pelo menos, para acordar as entidades políticas responsáveis”. Na apresentação da Rede Douro Vivo, em 2018, Pimenta Machado, vice-presidente para os Recursos Hídricos da Agência Portuguesa do Ambiente, anunciou mesmo aquilo que já se desenhava como um dos objectivos do consórcio: a eliminação de duas barragens obsoletas. A operação, no entanto, nunca se concretizou. 

Para Ana Geraldes, do Instituto Politécnico de Bragança, o problema é profundo: “As barragens do Plano Nacional de Barragens com Elevado Potencial Hidroeléctrico não obedeceram a critérios nem ecológicos, nem económicos nem sociais”, afirmou durante a apresentação. “Obedeceram a aspectos políticos, corrupção eventualmente”.

O estudo agora apresentado espera funcionar como um “alerta” junto do poder central e também do local, afirmou João Dias Coelho, presidente do GEOTA. Se a última crise económica havia “afastado” o ambiente da agenda política, a pandemia de covid-19 obriga a outra atitude: “Proporciona uma reflexão mais profunda sobre os impactos ambientais dos quais estamos a ser objecto e que necessariamente têm de ser tidos em conta nas novas políticas na área do ambiente”.

Soluções e sugestões

Nem tudo está por fazer. Além das medidas incluídas nos diversos Instrumentos de Gestão Territorial aplicados no território da bacia, existe um Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Douro, aponta o estudo. Mas a execução das medidas lá descritas é “muito reduzida e pouco articulada com os objectivos ambientais definidos no âmbito da Lei da Água Europeia: a directiva Quadro da Água”. Para a Rede Douro Vivo “falta um impulso político necessário para dar prioridade à sua implementação”.

Assim, apontam os investigadores e ambientalistas, “é urgente que a administração pública contabilize os impactos desta fragmentação nos serviços dos ecossistemas do rio e seus afluentes" e os tenha em conta em cada “tomada de decisão”. Além da desactivação de barragens, é preciso “apoiar alternativas energéticas mais eficientes (sobretudo eólica e solar) e menos impactantes”. O consórcio sugere ainda a promoção de “projectos de restauro ecológico e áreas prioritárias de conservação e remoção”, uma maior fiscalização de empresas e indivíduos no que a “danos ambientais” diz respeito, o “cumprimento das obrigações legais implicadas no tratamento e rejeição de efluentes” e a aplicação efectiva do “regime de caudais ecológicos”.

A Rede Douro Vivo deixa também achegas para empresas agrícolas, sugerindo que estas reduzam “drasticamente” o uso de fitofármacos e adubos. E para a sociedade civil, a quem cabe “usar de forma eficiente e económica a água para consumo, evitando usos poluentes ou contaminantes”, “denunciar práticas ilegais ou prejudiciais ao ambiente” e ainda “participar activamente no planeamento e gestão dos recursos hídricos locais, nomeadamente através dos processos de consulta pública”.

Essa tarefa de envolvimento da população fez a Rede Inducar integrar este consórcio. Para “fomentar processos participativos”, estiveram em quatro territórios ao longo dos últimos meses num “demorado processo de aproximação das pessoas e de mapeamento dos problemas identificados pelas populações”. A pandemia interrompeu os trabalhos, contou Gustavo Briz durante a sessão de apresentação do estudo, mas o tempo de terreno serviu para dar corpo a uma certeza: “Existe apetência e vontade para um envolvimento.”

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