A edição 9,5 do Walk&Talk não tem início nem fim — e está aí para “experimentar coisas novas”

A edição 10 do Walk&Talk, festival de arte pública em São Miguel, teve de ser adiada para 2021 devido à covid-19. Nasceu, assim, a edição 9,5, que alterna entre o online e o terrestre e chega ao fim este domingo. Correcção: esta edição “não tem princípio, nem fim”, diz Jesse James.

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Intervenção artística de Flávio Rodrigues Sara Pinheiro

Uma sala sóbria. Uma patinadora anda em círculos pela sala. Outros três patinadores, até então encostados à parede, começam a segui-la. Depois de um momento em que batalham com o chão, começam a percorrer o espaço, com uns óculos radiantes, enquanto a música robótica fica cada vez mais frenética. É uma descrição – quiçá simplista – de um dos eventos presentes na edição deste ano do Walk & Talk. Se esta fosse uma edição como as outras, a peça de dança Burning Eclipse, de Catarina Miranda, teria levado várias dezenas de pessoas a um qualquer recanto da ilha de São Miguel, nos Açores. Como esta não é uma edição como as outras, a coreografia foi vista a partir do canal do YouTube do festival.

“O ponto de partida do festival está na dimensão online”, diz ao P3 Jesse James, que partilha a direcção artística do festival com Sofia Carolina Botelho. É este o espírito do Walk&Talk 2020, uma edição programada para poder acontecer em plena pandemia de covid-19 porque “esteve sempre fora de questão” cancelar o festival.

“À medida que as semanas foram passando tornou-se mais claro que o que tínhamos definido para a 10.ª edição não fazia sentido”, explica Jesse. Esta, que pretende “celebrar uma data redonda”, passou para 2021, até porque “não fazia muito sentido” simplesmente “digitalizar as programações”. Numa altura em muitos eventos culturais foram cancelados, Jesse e a restante equipa encontraram na pandemia uma “oportunidade” para criar um novo festival. “Decidimos criar uma coisa de raiz e encaramos as coisas numa perspectiva mais de desafio e não de problema”, afirma, acrescentando que começar tudo do zero “foi muito libertador também”. E assim, nasceu uma edição, de 9 a 19 Julho, que não é a nove nem é a 10: é a 9,5. Uma edição que foi reprogramada até à última, na esperança de que o estado de calamidade decretado nas ilhas açorianas, e que vigora até 1 de Agosto, fosse revogado.

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Mural de Luísa Salvador Mariana Lopes

Portanto, se no passado o festival de arte pública enchia as ruas açorianas de pessoas, vindas de todo o lado, que andavam à volta da ilha para acompanhar a pintura de um mural num sítio recôndito ou ver espectáculos em locais emblemáticos de São Miguel, a edição deste ano desenrola-se entre onsite e online, ou seja, entre o terreno e a internet.

O online é o espaço de “expansão” dos projectos e o “ponto de encontro” do festival. Para isso foi criado um site para que “congrega os projectos todos” e assume as funções que eram desempenhadas pelo pavilhão Walk&Talk, o “ponto de partida” do festival noutras edições.

Já o onsite é a “forma de os projectos continuarem na ilha” e de se “materializarem no espaço”. É também uma forma de aumentar a “ligação com o público”, porque é “diferente” passear por São Miguel e encontrar um mural de Luísa Salvador, ou a intervenção do Flávio Rodrigues, ou até ir ao jardim António Borges, em Ponta Delgada, e encontrar uma peça da Carina Miranda.

Um “acto de resiliência”

“Num momento em que se digitaliza tudo, as nossas emoções, os nossos encontros, a forma como interagimos uns com os outros, é quase um acto de resiliência a insistência numa fisicalidade dos objectos e da própria arte”. Por isso, o online não é para “substituir” o terrestre: “o Walk&Talk 9,5 está entre o online e onsite, entre o global e o local, entre a ilha e o mundo. Uma coisa potencia a outra, mas não numa lógica de substituição”, resume. 

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Exposição de Brum Atelier e Atelier Caldeiras. Mariana Lopes

Esta “intersecção” permite “experimentar coisas novas”. Como o caso da rádio do festival, um “projecto-piloto”, que procura “desconstruir as linguagens dos artistas”. A criação de uma rádio já estava prevista para uma 10.ª edição, mas numa dimensão “muito mais simples”. Na edição 9,5, a rádio incorpora a função que em tempos foi assumida através de visitas guiadas ou workshops. Funciona das 8h às 00h com podcasts, entrevistas e projectos dos próprios artistas. “A rádio tornou-se a menina dos nossos olhos.”

E mesmo sendo “estranho” não existir o contacto com as pessoas, as reacções têm sido “óptimas”. O balanço é feito numa altura em que o festival se aproxima do fim. Este domingo, 19 de Julho, para o último ponto da agenda está guardada uma performance de Nádia Belerique, que procura explorar a meditação colectiva. Uma intervenção presencial — aberta a interessados mediante inscrição — e que será complementada pelo online. Também por isso, o último dia do festival acaba por simbolizar o espírito da edição deste ano.

Mas as datas de início e fim do Walk&Talk são meros formalismos. Não existe princípio, nem fim: “a edição 9,5 existe continuamente”. “Fica como arquivo digital. Uma coisa que está em contínuo. Numa não geografia e num não tempo.” A própria rádio vai continuar a repetir a programação e quem sabe se nas “próximas semanas” não serão acrescentados novos conteúdos.

Para Jesse James, esta é também uma das lições desta edição moldada pela pandemia. A possibilidade dos festivais se “expandirem no tempo”, uma “possibilidade” permitida pelo digital. Outra ilação é que a programação cultural necessita de “acalmar um pouco” para criar “contextos mais profundos”, quer para os artistas quer para o público. “Vamos aproveitar este momento para reflectir sobre futuro da programação e da curadoria nos próximos anos.”

O que se sabe, para já, é que em 2021 o Walk&Talk vai voltar aos Açores, independentemente dos moldes. Está feita a promessa. “Há ainda há muito para fazer.”

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