A diplomacia do queixume e das queixinhas
Esta diplomacia das queixinhas não resolve problema nenhum, deteriora a imagem e o prestígio de Portugal e menoriza e despreza os portugueses.
1. Da situação actual das fronteiras europeias, todos temos conhecimento. Cada Estado-membro toma as suas decisões de reabertura de fronteiras, total ou parcial, livre ou condicionada, baseado nos seus próprios critérios, sem que haja a obediência a um enquadramento comum. Este “estado da arte”, embora presuntivamente legal, é altamente censurável. Numa situação excepcional como esta, mesmo à margem das regras, era decisivo ter aceitado uma coordenação efectiva da Comissão. Decisivo para restaurar a confiança dos cidadãos e para gerar confiança entre os Estados-membros, assim garantindo um gradual e seguro restabelecimento da liberdade de circulação. Este é talvez o único ponto em que, nesta triste saga da abertura ou fecho de corredores, o Governo português tem razão.
2. Quanto ao resto, a linha definida pelo Governo português, assumida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros e pelo primeiro-ministro, é claramente prejudicial ao país. Não me custa a crer que, nos bastidores da política internacional, o Governo procure dar o seu melhor. Mas no palco público, nacional e internacional, caiu na diplomacia do queixume e da recriminação. Esta diplomacia das queixinhas não resolve problema nenhum, deteriora a imagem e o prestígio de Portugal e menoriza e despreza os portugueses, explorando um nacionalismo bacoco, de ressaibo a Estado Novo.
O Governo tem-se queixado recorrentemente de que as orientações da Comissão não estão a ser seguidas, mas Portugal foi lesto a quebrá-las, quando não abriu fronteiras com a Espanha a 15 de Junho, recusou depois abri-las a 22 de Junho (conforme fora proposto pelo lado espanhol) e terminou a fazer aquela pacóvia cerimónia de abertura a 1 de Julho. Um Governo não pode lamentar-se de que os outros não seguem os conselhos da Comissão, se ostensivamente rejeitou pô-los em prática.
Por outro lado, assim que, em meados de Junho, começou a ver listas negras selectivas, o ministro dos Estrangeiros não só alegou injustiça e até perseguição como ameaçou com retaliações e retorsões. Pouco depois, o primeiro-ministro pôs água na fervura, afastando a política da retaliação. Mas não deixa de ser irónico que António Costa, que agora condena as represálias recíprocas, tenha tido o seu ministro Santos Silva, em pleno fórum TSF de 19 de Junho, a defendê-las.
Veio já mais tarde o transe britânico. Convém lembrar que, embora em transição, o Reino Unido já não faz parte da União e nunca fez parte do espaço Schengen. Compreensivelmente, pela importância que o turismo britânico tem para Portugal, foi este o momento mais dramático, conducente a um discurso de nacionalismo primário, assente na vertigem da perseguição. Para Costa e Santos Silva, Portugal estaria a ser objecto de uma cabala, de uma espécie de conspiração internacional para “amarfanhar” o país, o nosso turismo, a nossa economia. As declarações de Santos Silva foram impertinentes e faroleiras e o tweet do primeiro-ministro, com um gráfico habilidoso (para não dizer manhoso), foi lamentável. E mais uma vez – como no episódio da bravata anti-holandesa –, muito danoso para a imagem internacional do país e até do primeiro-ministro. A esta ocorrência, juntou-se ainda o Presidente da República, que, pungentemente, apelava à velha amizade e aliança luso-britânica.
3. Analisemos a teoria da conspiração anti-portuguesa. Trata-se de uma tese disparatada, descabida, na velha esteira das “desculpas de mau pagador”. Basta examinar superficialmente as decisões dos países que têm posto condicionamentos à entrada dos oriundos de Portugal, para ver que o critério é objectivo. Não existe nenhuma sanha ou hostilidade para com Portugal ou qualquer preferência pelos nossos vizinhos espanhóis ou primos italianos. Existe um critério – com o qual se pode concordar ou não, que pode ter-se por adequado ou inapropriado –, mas que é aplicado estritamente a todos os que se achem em idêntica situação. O critério é o do número de novos infectados em função da população e a melhor maneira de reverter as limitações criadas não é seguramente a diabolização dos outros.
O desatino das mil justificações e desculpas não fica por aqui. Prossegue para a teoria de que os restantes países mistificam os seus números, omitem testes e alteram resultados para se livrarem do risco de serem excluídos dos tais corredores de turismo. A acusação é temerária e tem óbvias implicações diplomáticas. Nem Sánchez, nem Conte, nem Mitsotakis hão-de gostar de serem tratados pelo governo português como confabuladores ou mentirosos. Mas vale a pena perguntar: e os nossos números, serão fiáveis? Os indícios que temos, com necessidade constante de tentar explicar incongruências e disparidades, apontam para um retrato absolutamente fiel? Não estou a pôr nem porei as mãos no fogo pelas estatísticas apresentadas por outros Governos – o controverso caso espanhol é mesmo paradigmático –, mas sinceramente as nossas também levantam dúvidas que outros, a qualquer momento, podem explorar.
Falta, pois, a grande desculpa trumpiana – a feitura de mais testes –, que de tanto desmentida por especialistas e pelo bom senso não merece mais do que esta linha.
4. Já o disse há um mais de um mês, mas creio que vale a pena repetir. Não devemos com certeza abandonar a frente diplomática e a pedagogia da adopção de critérios mais completos e mais fiáveis. Mas o melhor que podemos fazer pelo nosso país, pela nossa economia e pela preparação para uma eventual segunda vaga é combater a disseminação actual da infecção que, todos reconhecem, é anormalmente alta. Se enfrentarmos corajosamente essa adversidade, não haverá critério nem ranking que possa ser esgrimido em nosso desfavor. Se o governo tivesse actuado em tempo na zona da Grande Lisboa, em vez de se preocupar com uma Champions que é bem capaz de nos trazer mais dissabores do que vantagens, não era preciso arranjar tanta desculpa. Nem arranjar tanta desculpa nem inventar tanta culpa.
NÃO. Genocídio de Srebrenica. O massacre de bósnios muçulmanos há 25 anos veio demonstrar que nunca estamos livres da barbárie. Contra o negacionismo e a impunidade, é fundamental lembrar esse horror.
NÃO. Orbán e Costa: duplo padrão. Hoje Costa encontra-se com Orbán. Costa não critica Orbán. Onde estão os anti-Fidezs portugueses? Não seria altura de fazer do rule of law um critério de repartição dos fundos?