Mais verdadeiro, menos milagreiro
Vivemos tempos duros. Abdicámos de parcelas da nossa liberdade. Privámo-nos de relações sociais. Se o Homem é, como toda a filosofia o postula, um ser social, então estes foram tempos contrários à nossa natureza. Confiámos que, com este sacrifício hercúleo, seria possível retomar a normalidade das nossas vidas. Porque nunca nos cansamos da gabarolice comparativa quando aparecemos melhor na fotografia, ainda que circunstancialmente, os políticos não hesitaram em falar de um “milagre”. E o povo acreditou que a “normalidade” estava ao virar da esquina. Não estava. Espíritos mais céticos desconfiariam de tal fenómeno extraordinário que a ciência não pode explicar. Aliás, se há matéria em que precisamos de fé e ciência em doses iguais é uma pandemia.
Quem nos governa preferiu deixar à conta da primeira a gestão da crise. Foi essa fé, politicamente religiosa, que sustentou os ziguezagues de quem tinha o dever de nos guiar com firmeza. As máscaras que não eram essenciais, mas que agora são obrigatórias. A app que era um atentado às liberdades individuais e agora está para chegar. Do Governo milagreiro ainda ouvimos a garantia de que nunca iria existir desconfinamento de forma faseada territorialmente. Sabemos como a história acabou. E somos surpreendidos pela exclusão das rotas do “turismo seguro” de vários países da Europa. Porquê? Para começar os nossos parceiros acreditam mais em dados do que em “mezinhas”.
E a verdade é dura: o número de infetados continua a subir; a credibilidade dos nossos dados a recuar. Ocupamos um lugar pouco simpático do ranking europeu: somos o 6º país com maior número de casos por milhão de habitantes, já com mais casos que aquele desastre que foi Itália. As dúvidas assolam-nos e o medo cresce. Tememos pela nossa segurança, pela nossa economia e pelo nosso futuro. E sentimos a injustiça.
As universidades e escolas começaram a fechar no início de março. Os portugueses confinaram uma semana antes do estado de emergência. O governo ficou com os créditos. O SNS salvou vidas, os médicos e enfermeiros deram tudo o que tinham e o que não tinham. O governo ficou com os créditos. Os especialistas reuniram, estudaram e aconselharam. O governo ficou com os créditos. As autarquias compraram máscaras e equipamentos, apoiaram famílias, estiveram onde mais nenhum poder público esteve. O governo ficou com os créditos.
Agora que as coisas não correm como todos gostaríamos, que o milagre já não chega para disfarçar a falta de competência, a culpa é dos especialistas que não dizem o que o governo quer, a culpa é dos ingleses que não abrem o turismo como o governo quer, a culpa é dos portugueses que não se portam como o governo quer. Embora o PM tenha feito sempre o contrário, participando em festinhas, permitindo manifestações e celebrações. Errar numa pandemia é natural. Ninguém podia acertar tudo.
Mas tenhamos o mínimo de honestidade para reconhecer os erros, corrigir e andar em frente. Os portugueses não são crianças. Percebem a verdade e a dureza dos tempos. Desde que lhes expliquem. Sem rodeios, sem truques e malabarismos. Mas não perdoam que os enganem quando as coisas correm mal. A dissimulação é a arma dos fracos. Digamos a verdade: o “milagre português” acabou, se é que algum dia chegou a existir. Ninguém está a querer saltar do barco, os portugueses são um povo guerreiro, precisam, por isso mesmo, de generais à altura dos desafios. Juntos podemos fazer melhor. Mas, por favor, não nos tentem enganar.