Ciência Aberta: um período de ouro da ciência?
A mais antiga e maior editora académica portuguesa – a Imprensa da Universidade de Coimbra – está a caminho de colocar em Acesso Aberto todas as publicações saídas nos últimos 20 anos.
1. O paradigma de Alexandria
Fundada por Alexandre Magno em 331 a.C., a cidade de Alexandria viria a ser enriquecida, no tempo dos Ptolomeus, com a construção de dois dos monumentos mais carismáticos da antiguidade: o Museu (ou ‘templo das Musas’, um verdadeiro centro de investigação) e a Biblioteca. Tanto o Museu como a Biblioteca representam o cosmopolitismo desta grande urbe helenística e o período de ouro da ciência que estimulou, num contexto culturalmente tão exuberante como o do antigo Egito.
Para a fama da cidade contribuiu também a construção do Farol de Alexandria e a respetiva inclusão no rol das Sete Maravilhas da Antiguidade, mas a Biblioteca permaneceria para a posteridade como símbolo por excelência do saber e da seriedade científica. Ser incluído e indexado nos fundos desta Biblioteca era equivalente a um selo de qualidade: a Biblioteca de Alexandria não recolheu tudo o que foi produzido na antiguidade, mas o que filtrou para ser preservado e catalogado definiria o cânone do que seria estudado e admirado no futuro. Fixou ainda um modelo replicado, em escala variada, por milhares de bibliotecas, que, desde então, se tornaram o meio por excelência de preservação da memória humana e base essencial de toda a investigação.
2. A pandemia e o “fim” temporário das bibliotecas físicas
Nunca, como no passado recente, as bibliotecas e os centros de saber enfrentaram um desafio coletivo tão grande: pela primeira vez, na história da humanidade, o acesso à informação por meios físicos sofreria duras limitações, devido à necessidade de confinamento social, afetando grandemente o trabalho de milhões de pessoas por todo o mundo, mesmo circunscrevendo esses efeitos ao universo de estudantes, docentes e investigadores. A situação só não se tornou dramática porque foi possível recorrer a bases de dados e bibliotecas digitais, tendo ainda muitas bibliotecas (como foi o caso da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra) desenvolvido notáveis programas de digitalização parcial de fundos para apoio à distância à comunidade de leitores e investigadores.
Mas o fator que mais transversalmente respondeu a esta emergência do saber foi a disponibilização sem precedentes de bases de dados em Acesso Aberto, seja sob a forma de publicações, seja como dados de investigação, essenciais para que a comunidade científica como um todo possa contribuir para estudar e vencer a crise pandémica. Desinvestir nas bibliotecas físicas tradicionais e na função central que têm na preservação e promoção do saber seria um erro de trágicas consequências. Ignorar a necessidade de articular a sua ação com as bases de dados digitais e o Acesso Aberto seria uma falha programática básica. O sucesso estará do lado de quem mais rapidamente desenvolver e aplicar uma junção harmoniosa de meios analógicos e digitais, estimulando a sustentabilidade futura do Acesso Aberto, desde a produção do saber à sua publicação e disseminação.
3. Ciência Aberta: um novo período de ouro da ciência
O conceito emergente de Ciência Aberta é bastante mais lato do que o Acesso Aberto às publicações, que começou por ser o seu motor de desenvolvimento. Com efeito, envolve uma transparência muito maior ao longo de todo o processo de investigação e inovação científica: o acesso a Dados Abertos (“as open as possible, as closed as necessary”), marcados por princípios FAIR (Findable, Accessible, Interoperable, Reusable); a Ciência Cidadã, que pressupõe o envolvimento dos cidadãos e da sociedade na utilização, no escrutínio e na produção da ciência; os mecanismos de financiamento e de avaliação institucional e científica, pela capacidade que demonstrarem de premiar as melhores práticas, promovendo o “prazer” de investigar e publicar em detrimento da “pressão” de o fazer.
As instituições académicas têm uma obrigação central no desenvolvimento desse processo, tal como os decisores políticos e a sociedade em geral. Por isso, cada gesto conta para o progresso nesta área: a mais antiga e maior editora académica portuguesa (Imprensa da Universidade de Coimbra) está a caminho de colocar em Acesso Aberto todas as publicações saídas nos últimos 20 anos, aplicando de forma transversal essa opção a todas as novas publicações. Esse desígnio permitiu-lhe ascender ao Top 3% das editoras internacionais referenciadas no DOAB – Directory of Open Access Books.
Mas para que a Ciência Aberta se torne um novo período de ouro da ciência é necessário que todos os agentes se comprometam com esse objetivo. A Europa já o elegeu como um dos seus pilares identitários, esse “european way of life” que tem seculares raízes humanistas e multiculturais. Constituirá, sem dúvida, um dos conceitos que marcarão a retoma da confiança na ciência e a sua democratização ao longo das próximas décadas, bem como a dimensão da centralidade europeia na nova ordem científica, económica e cultural.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico