Ir às compras, apanhar sol, andar de metro
No dia 18 de Março, abandonei a minha rotina ferroviária e nunca mais andei de transportes públicos.
Antes da pandemia, ia quase sempre de transportes públicos (comboio) para o trabalho.
Uma ou outra vez, quando o tempo estava mais favorável, atrevia-me a ir de bicicleta, perfazendo não mais de 15 quilómetros para um lado e 15 quilómetros para o outro, quase sempre em linha recta e com o rio Tejo por companhia. Era um privilégio e uma excepção, que na verdade posso retomar a qualquer momento.
Nos dias mais normais, durante os 17 minutos da viagem de comboio, aproveitava para ler os jornais enquanto ouvia as notícias na rádio (quem não faz duas coisas ao mesmo tempo, hoje em dia?), o que me permitia chegar à redacção actualizada. Era também um privilégio, não só porque o preço do passe compensava, mas também porque a viagem era curta, raramente apinhada e sem peripécias.
Desde o dia 18 de Março, nunca mais andei de transportes públicos. Quando vou para o trabalho, vou de carro, a ouvir rádio, sozinha e socialmente muito distante do ser humano mais próximo. À sua maneira, é outro tipo de privilégio que milhares de portugueses não têm, seja porque não têm carta, seja porque não têm carro, seja ainda porque não têm a hipótese de suportar a despesa de ter um carro na estrada diariamente. Sobra-lhes a (má) sorte de andar em autocarros cheios ou carruagens apertadas à hora de ponta. Com máscara, sim, mas sem qualquer distanciamento social. Não adianta negá-lo. Há reportagens, vídeos caseiros e fotografias nas redes sociais que o comprovam.
É por isso estranho que a ministra da Saúde tenha dito que não se pode associar os transportes públicos à existência de novos casos. Na sexta-feira explicou-se melhor e clarificou que nas “identificações de infecção, não há nenhuma associada a contágio em transportes”. Apesar disso, reconheceu, há “uma probabilidade elevada” de transmissão. Marta Temido queria dizer que os transportes públicos não merecem ser olhados com desconfiança e preconceito porque são essenciais às populações. Mas isso não significa que o vírus não apanha o metro.
Também António Costa garantia, no final de Maio, que o risco de contaminação nos transportes públicos estava controlado e que “as taxas de lotação” eram “genericamente cumpridas, com a excepção de um comboio das 6h36 da manhã da Linha de Sintra”.
Visto daqui, como carinhosamente chamo a esta rubrica, eu gostava era de ver a dupla Temido & Costa, com as suas máscaras descartáveis (ou não), entrar no tal comboio que é a excepção. Não seria assim tão estranho para um primeiro-ministro que foi ao Chiado dizer aos portugueses que é tranquilo fazerem compras para ajudarem à reanimação da economia. Também já o vimos na praia a roer uma maçã e a explicar a nova sinalética.
Para quando uma viagem de metro ou de autocarro, feita por uma qualquer autoridade do Estado, para incutir essa mesma confiança? Ainda me lembro de quando vários responsáveis políticos foram da Ericeira a Setúbal para mostrar o impacto da redução dos passes sociais. Talvez seja esse o empurrão de que preciso para voltar à minha rotina ferroviária. O planeta agradece.