A maior vítima da covid-19 é a humanidade
A covid-19 veio exponenciar o ingrediente que destrói qualquer perspectiva sobre o presente e o futuro, o egoísmo. Ao aguçar o nosso medo de morrer e a protecção dos nossos veio catalisar a indiferença para com os outros.
Por mais que exista sempre um infinito de melhorias à nossa frente, a percepção de humanidade que temos em comum, estava a atingir máximos históricos. Vivíamos praticamente sem fronteiras na Europa. São poucos os países no mundo que nos pedem visto, comprávamos um bilhete e estávamos em qualquer lado. Sentíamo-nos parte do mundo. O drama dos refugiados que nos batem à porta, fez-nos ver que vivemos num mundo global. Sentimos o pulso à crise do Sudão, do Iémen, da Birmânia... Tudo muçulmanos que levantam os corações de um país cristão. Ainda é pouco, mais é uma evolução enorme em relação ao histórico da preocupação de um grupo de seres humanos para com outros dos nossos iguais. As alterações climáticas e a preocupação do futuro do nosso planeta, obrigaram-nos a pensar que somos uma família, e que só há soluções se pensarmos como um todo, e que as fronteiras são linhas que nada dividem. Estávamos a caminhar para pensar em conjunto, mas agora não. Voltamos atrás.
A covid-19 veio exponenciar o ingrediente que destrói qualquer perspectiva sobre o presente e o futuro, o egoísmo. Ao aguçar o nosso medo de morrer e a protecção dos nossos veio catalisar a indiferença para com os outros. Tudo serve para nos dividir. Lutas bairristas norte-sul. Discussões Portugal-Espanha para agarrar mais turistas. Culpabilização de quem nos excluiu da lista de países seguros para viajar. Teorias da conspiração reprovadas cientificamente sobre o aparecimento do vírus. Tudo serve para nos odiarmos mais uns aos outros, quando só temos que perceber que estamos todos as sofrer.
Independentemente de quantos já morreram ou quantos mais virão a morrer pela covid-19, não há qualquer comparação para com as consequências em termos de número de vidas perdidas, por nos termos fechado física e emocionalmente em nós próprios. Todos os programas de ajuda humanitária foram interrompidos ou castrados drasticamente. Desenvolvimento, segurança económica, alimentação, educação, saúde para quem mais precisa... Tudo parado. O impacto em vidas de crianças, jovens, mulheres e homens é imensurável, mas na ordem dos milhões. À fome, pela falta de prevenção de doenças como a malária, pela interrupção de tratamento de doenças crónicas que são dos maiores flagelos dos nossos dias: VIH e tuberculose, e pela não vacinação de muitas doenças assassinas (sarampo, poliomielite, tétano, etc...), a nossa humanidade vai sofrer imensamente.
Podemos culpar a protecção das equipas que deviam estar no terreno e ficaram em casa, ou podemos apontar o dedo à não-mobilidade por todos os aviões que ficam em terra, mas a grande ameaça do dia de hoje o do que há de vir é a nossa indiferença hipertrofiada pelo medo da morte e pelo medo do mundo.
O afastamento literal das pessoas torna-nos mais frios. O fechar emocional das fronteiras do nosso pensamento, leva-nos ao retrocesso civilizacional de considerarmos que a vida de um português vale mais do que qualquer outra. Acreditar nisso tem um nome.
A grande vítima da covid-19 e que vai deixar sequelas muito para além da doença é a perda da humanidade. É urgente canalizarmos a nossa atenção para o outro, para uma visão global e humanitária, e para a casa de todos nós: o planeta.
Se não, de que vale tudo o que temos se perdermos a Humanidade?