Uma palavra sobre o Iémen
Não há dia que passe que não pense naquilo que eu posso fazer para que as pessoas que me rodeiam, interiorizem nos seus pensamentos e nas suas acções, o facto de que estamos a permitir que no Iémen as pessoas deixem de ser pessoas.
Depois de dez missões em cenários de guerra, achei que já não poderia ser surpreendido. Estava enganado. Ladeado pelo Mar Vermelho e pelo Oceano Índico, o Iémen é uma mistura de montanhas, deserto e águas cristalinas. A capital Sanaa aguça o apetite de qualquer viajante pelos arranha-céus históricos, património da Unesco que lhe dão o nome de Manhattan das Arábias. Compreender a cultura do Iémen leva-nos a viajar no tempo para além dos tempos, naquela que é uma das civilizações mais antigas do planeta com uma riqueza histórica e cultural de mais de três milénios. Deveria ser esta a imagem a construir deste nobre povo e bonito país, mas há uma realidade que apaga todas as outras identidades: a guerra. A guerra transforma cultura em desprezo, transforma paisagens idílicas em preconceitos e transforma pessoas em estatística.
Tenho três memórias iniciais que poderiam resumir toda a minha percepção do caos que se vive no Iémen. Acabado de aterrar em Adén, cidade costeira no sul de montanhas e baías lindas em cima do mar, vou de carro até ao hospital dos Médicos Sem Fronteiras quando a primeira coisa que vejo é um homem a chegar numa ambulância com um tiro nas costas. Está morto. Despejam-no como um pedaço de carne. Durante toda a minha missão digladiei-me com este dilema: Tentar ver pessoas e não pedaços de carne, quando o meu serviço de urgência era invadido por feridos dos bombardeamentos constantes nas linhas da frente. Corpos ensanguentados, empoeirados, braços amputados, pernas perdidas, por vezes de famílias inteiras. Homens, mulheres e crianças. Torna-se tão frio que eu tenho medo de deixar de sentir. Horas e horas a trabalhar, noites perdidas para que os corações continuem a bater. Tenho problemas em dormir à noite, porque não sei se consigo distinguir uma pessoa dum pedaço de carne. Esforço-me para manter a minha humanidade.
A segunda memória inicial que me marcou para todo o sempre foi auditiva. Quando saí do carro a primeira coisa que ouvi foi uma rajada de uma Kalashnikov. Não sei a que distância estaria de mim, mas pareceu que foi no meu ouvido. Por reflexo baixei-me e assustei-me. Foi a primeira e única vez que me assustei, porque as rajadas de metralhadoras são tão naturais como respirar, e é raro o homem que não tenha uma Kalashnikov. Esta é a imagem de caos e desgoverno em que se encontra este país. O anormal torna-se normal.
A terceira memória de apresentação é mais leve, mas bem mais simbólica. De mochila às costas antes de entrar no edifício que viria a chamar casa, passa por mim uma carinha pick-up 4x4 a alta velocidade. Quem vai a guiar é uma criança que não pode ter mais do que 12 anos, e certamente com dificuldades em chegar aos pedais, levava dentro da carrinha uma série de crianças bem mais novas com ar de diversão. Fui vendo muitas destas imagens com o passar dos dias que espelham bem o caos e anarquia que uma guerra causa da noite para o dia. Não são as bombas que matam mais pessoas, mas o caos. Um conflito desta magnitude destrói o ensino, o acesso à saúde, a justiça e a segurança. Tudo o que faz as pessoas sentirem-se pessoas. São milhões de crianças em risco de morrer à fome que vivem como se não houvesse amanhã. Porque para muitas, não há.
Não consigo, não posso e não quero apagar tudo o que vi e vivi. E por isso não há dia que passe que não pense naquilo que eu posso fazer para que as pessoas que me rodeiam, interiorizem nos seus pensamentos e nas suas acções, o facto de que estamos a permitir que no Iémen as pessoas deixem de ser pessoas. E que pessoas é que nós somos ao fingir que isto não está a acontecer?