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Brasil e o futebol: nem a morte os separa

Na volta dos jogos oficiais, o Maracanã registrou três gols e duas mortes.

Na quinta-feira 18 de Junho, o futebol brasileiro saiu do isolamento social. Em uma partida sem público e sem transmissão da televisão, o Flamengo venceu o Bangu, em jogo válido pelo campeonato carioca. Dentro de campo, três gols. Fora dele, a metros dali, no hospital de campanha do próprio estádio do Maracanã, mais duas mortes registradas devido à covid-19. Este artigo de opinião, sinceramente, poderia acabar aqui. É autoexplicativo.

O Brasil continua a registrar muitas mortes pelo coronavírus. No entanto, a rotina brasileira, cada dia mais, volta a ter contornos de normalidade. Os shoppings estão abertos e gigantescas filas se formam para compras ou caminhadas em frente às vitrines. As ruas estão cheias. As festas em casa e encontros na praia recuperaram seu espaço. Parece que a quarentena acabou e o futebol não poderia ficar de fora.

Há semanas, o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, estreita relações com Jair Bolsonaro. Foram conversas, almoços e defesas públicas pela volta dos treinos e jogos. Bolsonaro, inclusive, era presença aguardada na partida desta quinta-feira. Planos que mudaram após a prisão de Fabrício Queiroz, peça-chave no esquema de “rachadinha” (corrupção onde funcionários entregam parte dos salários ao chefe) que envolve o filho dele, Flávio Bolsonaro, e que pode, definitivamente, relacionar a família presidencial com ações da milícia no Rio de Janeiro.

A pergunta que permanece é a mesma feita por Walter Casagrande Jr., ex-jogador de futebol e atual comentarista da TV Globo: “por que a pressa? “
Como diria o italiano Arrigo Sachi, “o futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes da vida”. No entanto, no Brasil, essa frase parece não fazer tanto sentido. E não é por causa da paixão do brasileiro pela bola, mas sim pela importância da simbologia desse esporte para a atual política. E claro, pelos altos cifrões envolvidos.

A minha camisola da seleção brasileira de futebol veio comigo à Portugal. Na minha mudança de São Paulo para Lisboa, fiz questão de trazê-la na bagagem. No entanto, ao sair da mala, ela foi direto para a gaveta. Mais precisamente, para o fundo da gaveta. A última vez que a vesti foi na derrota brasileira para Bélgica, nos quartos-de-final da Copa do Mundo da Rússia de 2018 e, sinceramente, não voltarei a vesti-la tão cedo. Nada tem a ver com o trauma da derrota, mas sim com a simbologia que a camisola carrega hoje. O verde e amarelo são marca do governo da extrema-direita de Bolsonaro. A camisola da seleção tornou-se uma espécie de “grife ideológica”. O que, pensando bem, faz todo sentido se considerarmos que os escândalos de corrupção da Confederação Brasileira de Futebol e as suspeitas de crimes que envolvem a família Bolsonaro formam uma bela parceria – quase uma
co-branding.

Ironicamente, é pelo futebol também que começa a surgir um novo respiro de esperança para o país. Não dentro de campo e muito menos movido pela diretoria dos clubes. Falo de quem está nas arquibancadas (ou estava, antes da pandemia) e de quem representa, verdadeiramente, os times.

No jogo de quinta-feira, faixas e protestos cobriram o lado de fora do Maracanã. Adeptos de rivalidade histórica do Flamengo, Vasco, Botafogo e Fluminense uniram-se para protestar contra a volta das partidas e pedir o afastamento de Bolsonaro. Em manifesto, assinado em conjunto, o amor pelo esporte é reforçado, mas uma escolha está em destaque: “amamos, primeiramente, o respeito à vida.”.

Em São Paulo, nas últimas semanas, claques organizadas do Corinthians e Palmeiras também se juntaram para inibir protestos antidemocráticos e fascistas de apoiadores de Bolsonaro. Em poucos minutos, a união de adeptos sufocou a presença de algumas dezenas de apoiadores do governo. Mesmo em tempos de pandemia - que só piora no Brasil – o futebol fora de campo moveu um apoio popular considerável a favor da democracia. O encontro de claques rivais sempre foi sinônimo de violência no Brasil, mas nesses encontros, a polícia de São Paulo foi a única responsável pela pancadaria. Em uma ação de contenção e dispersão, agentes dispararam bombas e gases de efeito moral contra os manifestantes antifascistas que protestavam pacificamente. Em pouco tempo, a Avenida Paulista, principal endereço da cidade de São Paulo, virou um campo de guerra.

Desde de então, por ordem do Governo de São Paulo, que aprova e incita a selvageria policial, manifestações pró e contra governo devem acontecer em locais diferentes da cidade. A decisão, que dá um ar de simples pragmatismo, também escancara os ideais tendenciosos do próprio governo do estado. Na semana seguinte, na mesma avenida da cidade de São Paulo, dezenas de manifestantes – muitos a vestir a camisa da seleção brasileira – voltaram a pedir o fechamento do Supremo Tribunal Federal. Em outro sítio da cidade, milhares de pessoas se uniram para pedir democracia e o fim do racismo. O ato foi motivado pela morte de George Floyd nos Estados Unidos, mas vale lembrar que a apenas a polícia de São Paulo matou, em cinco anos, nove vezes
mais que a polícia norte-americana. E dentro esses casos, a grande maioria das vítimas era negra e pobre. As imagens aéreas de ambos os protestos são definitivas. Bolsonaro perde, a cada dia, suporte nas ruas.

O futebol é uma força popular. Não é apenas sobre dois times a disputar um jogo. Não existe futebol sem adeptos – seja no estádio ou na televisão. Não existe espaço para jogos fantasmas. Porém, em um Brasil imerso por notícias ruins, o futebol torna-se algo fundamental. Fora de campo e não dentro dele. Quem dera a emergência de retornar os campeonatos fosse realocada para conter a pandemia. Quem dera houvesse a mesma pressa para nomear-se novos ministros da saúde, da educação e secretário de cultura. Quem dera houvesse a mesma pressa para o próprio Rodolfo Landim indenizar todas as famílias que perderam jovens atletas no incêndio que atingiu as instalações da categoria de base do Flamengo. Mas, para que a pressa?

O Brasil é um país de prioridades. E essas não são escolhas baseadas no bem estar social e no amor à vida.

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