Em defesa da Ermida de Nossa Senhora do Socorro, no Carvalhal (Bombarral)

Os interesses imobiliários e a pressão turística crescente perante a ilusão de paraísos identificados com a ruralidade do Oeste não se podem sobrepor ao respeito pelos símbolos do passado.

A Ermida de Nossa Senhora do Socorro, situada à entrada da aldeia de Carvalhal (Bombarral), é uma jóia do património vernacular da região Oeste, existindo já desde a segunda metade do século XVI: um singelo mas erudito exterior de formulário chão esconde no seu interior um magnífico programa decorativo barroco composto por azulejos, talha, esgrafitos e brutescos, numa surpreendente obra de “arte total” de grande efeito cenográfico. Pelo seu valor histórico-artístico, a ermida foi classificada como Imóvel de Interesse Público (Decreto nº 45/93, de 30 de Novembro), encontrando-se por isso sujeita a regras de intervenção arquitetónica e urbanística, com uma Zona Geral de Proteção (ZGP) de 50 metros em seu redor, onde não se pode construir sem parecer favorável da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). A própria aldeia do Carvalhal está abrangida no Plano Director Municipal do Bombarral como uma Unidade Operativa de Planeamento e Gestão sujeita a Plano de Salvaguarda e Valorização (UOPG 18 — aglomerado urbano do Carvalhal).

Porém, estes instrumentos de protecção patrimonial foram ineficazes e não impediram que tivesse sido aprovada e iniciada a construção de uma moradia de dois pisos no terreno imediatamente adjacente à ermida. Teme-se ainda que as fundações do novo edifício tenham sido escavadas sem o obrigatório estudo arqueológico e que a maquinaria pesada e a movimentação de terras possam vir a trazer danos à estabilidade da ermida. A esta ameaça patrimonial acrescenta-se o delito ambiental de, em plena Reserva Ecológica Nacional, terem sido cortadas árvores, movimentarem-se terras e construir-se um paredão de quase 7 metros de altura, o que já motivou o embargo da obra pela Câmara Municipal do Bombarral (CMB). Mas não está acautelado o respeito pelo valor patrimonial da ermida classificada, negligenciado em favor de interesses privados, como tantas vezes ainda sucede por este país fora.

Foto
A Ermida de Nossa Senhora do Socorro existe desde a segunda metade do século XVI cortesia Luis Raposo

Desde logo importa questionar o papel que a DGPC teve no decurso da aprovação deste processo, uma entidade que tem por missão assegurar a gestão, salvaguarda e valorização do património cultural português. Assim, depois de duas reprovações consecutivas do projecto a edificar junto à ermida, invocando-se razões de ausência de enquadramento urbanístico e integração paisagística, excessiva volumetria e características dissonantes da proposta e a possibilidade de afectar vestígios arqueológicos no subsolo, não se compreende o parecer final favorável dado pela DGPC, não obstante o projecto aprovado ser no essencial idêntico ao inicialmente reprovado e omitindo as razões que tinham sido evocadas para justificar os anteriores pareceres negativos (que se mantiveram, no essencial, inalteradas). É surpreendente esta decisão num organismo estatal que devia zelar pelo bem patrimonial de todos!

De facto, a Ermida de Nossa Senhora do Socorro vale pelo seu conjunto interior, que fascina quem a visita; mas vale igualmente pelo enquadramento urbano e paisagístico que define a sua tipologia de templo rural isolado no meio do campo, com uma singular galilé cupulada. A construção de uma moradia de grande volumetria no terreno adjacente perturba significativamente a imagem, enquadramento e leitura do imóvel classificado, em relação ao qual se sobrepõe.

Foto
A Ermida de Nossa Senhora do Socorro vale pelo seu conjunto interior cortesia Luis Raposo

Por outro lado, um parecer da DGPC sobre a construção na ZGP de um imóvel classificado é vinculativo apenas em caso negativo, proibindo a edificação; pelo que a emissão de despacho favorável não obriga à construção do projecto, apenas contempla a sua possibilidade de execução. De facto, as competências de licenciamento deste tipo de obras são das câmaras municipais que, não obstante os despachos favoráveis da DGPC, podem negar-se a atribuir o Licenciamento de Obra, suportando-se num maior conhecimento da realidade local devido à proximidade existente, nas análises dos técnicos camarários, nos regulamentos locais e em eventuais pareceres de especialistas consultados para o efeito. Não adianta, pois, sacudir o ónus das responsabilidades para a DGPC, como é hábito em tantas situações similares.

Os interesses imobiliários e a pressão turística crescente perante a ilusão de paraísos identificados com a ruralidade do Oeste não se podem sobrepor ao respeito pelos símbolos do Passado, pelas memórias das comunidades locais e pelo seu património cultural (imóvel, arqueológico, decorativo, paisagístico, etc.). Na realidade, são estes vectores que sustentam aquela essência paradisíaca, onde o bem-estar individual só tem sentido se integrado num entendimento colectivo.

Em face de tudo isto, apelamos a que os diversos intervenientes, sensibilizados pela indignação que tem vindo a público vinda dos mais distintos quadrantes, encontrem uma solução de compromisso para humildemente resolver a situação, que poderá passar pela indemnização do proprietário e aquisição do terreno por parte da Câmara Municipal do Bombarral, reconvertendo-o num espaço verde de enquadramento, protecção e dignificação da Ermida de Nossa Senhora do Socorro.

Dóris Santos, Historiadora de Arte
Hélder Carita, Arquitecto
João B. Serra, Historiador
João Vieira Caldas, Arquitecto
Joaquim Rodrigues dos Santos, Arquitecto
José Manuel Fernandes, Arquitecto
José Meco, Historiador de Arte
Luís Raposo, Arqueólogo
Manuela Santos Silva, Historiadora
Raquel Henriques da Silva, Historiadora de Arte
Sérgio Gorjão, Historiador
Vítor Serrão, Historiador de Arte

* Autores do livro Arte por Terras do Bombarral (2017)

Sugerir correcção