Igreja pede reforço do papel do Estado para responder a crise económica e social “sem paralelo”
Pandemia deve ajudar a “repensar” o modelo social e económico e não pode servir para legitimar atropelos de direitos ou fecho de fronteiras. Avisos dos bispos portugueses no final do encontro em que o bispo de Setúbal, D. José Ornelas foi eleito presidente da Conferência Episcopal.
Quando a pandemia da covid-19 estiver superada, “espera-nos uma crise económica e social de uma dimensão que não tem paralelo na história mais recente”. O aviso, claro e conciso quanto baste, está contido na reflexão que os bispos portugueses apresentaram nesta quarta-feira, no desfecho do encontro em que o bispo de Setúbal, D. José Ornelas, foi eleito presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), sucedendo assim a D. Manuel Clemente.
No documento lido aos jornalistas, no que pretendeu ser um contributo para o que a Igreja Católica considera ser a necessidade de “repensar os alicerces” da sociedade pós-covid-19, os bispos antecipam que o desemprego e a pobreza vão em breve atingir “níveis muito elevados”, o que se percebe desde logo pelos “pedidos de ajuda para satisfação das mais básicas necessidades alimentares que se têm multiplicado como nunca se viu no passado recente”. E a primeira coisa a fazer será valorizar o papel do Estado, “não só no que diz respeito aos necessários apoios sociais, mas também no que diz respeito ao relançamento da economia”.
“Verifica-se agora que o mercado ou uma economia movida pelo interesse individual não conseguem, por si só, fazer face a tão exigente tarefa”, declaram os bispos, insistindo que a intervenção do Estado “no plano das políticas social e económica” será agora tão determinante quanto na Grande Depressão que atingiu o mundo na primeira metade do século XX.
“Esse papel do Estado é reconhecido pela doutrina social da Igreja, salvaguardado que seja o princípio da subsidiariedade, isto é, desde que ele não se torne omnipresente anulando as iniciativas da sociedade civil”, declararam, lembrando embora que “convirá não cair na ilusão de que do Estado se pode esperar a superação da crise sem o contributo da iniciativa e criatividade da sociedade civil, quer no plano dos apoios sociais, quer do relançamento da economia”.
“Seria uma forma de desresponsabilização da sociedade civil esperar passivamente pela intervenção do Estado em todos os domínios”, até se considerarmos “as limitações financeiras do Estado, o muito elevado nível da dívida pública portuguesa e que o agravamento desse nível se reflectirá na taxa dos juros dessa dívida”, consideram, dizendo-se seguros de que também o mercado e a economia terão de passar a guiar-se pelos valores da solidariedade. “Uma economia movida pelo objectivo de maximização do lucro não responde às exigências da crise que atravessamos”, alertam.
Experiência “inédita"
De resto, e considerando que a experiência, “inédita” para as actuais gerações, que o mundo atravessa por causa da pandemia deve servir para “repensar os alicerces” em que assenta a sociedade actual, os bispos vincaram a necessidade de reconfigurar o “velho” sistema económico que se mostrou gerador de tantas desigualdades. E, numa espécie de aviso prévio, lembram que a reconstrução da sociedade não poderá ser moldada por nenhuma forma de “determinismo” ditado pela necessidade de evitar novos surtos da pandemia. Dito de outro modo, é urgente “distinguir entre exigências de curto prazo” e “opções de mais vasto alcance”. Em termos práticos, a Igreja procura travar a possibilidade de os atropelos à liberdade individual e à privacidade dos cidadãos e de o fecho de fronteiras passarem a constituir regra, ao invés de excepção. “Algumas privações da liberdade individual e da privacidade, ou o fecho de fronteiras, poderão ser admissíveis num contexto excepcional, mas não deverão tornar-se regra ou passar a ser encaradas com mais fácil tolerância”, insistem.
Do mesmo modo, a CEP lembra que práticas como o menor uso de transportes públicos e a redução de contactos presenciais e sociais “não devem estender-se para além deste contexto excepcional”. Isto sem regatear as vantagens do teletrabalho imposto a uma larga proporção de trabalhadores. “O recurso mais frequente ao teletrabalho pode permitir uma mais fácil conciliação do trabalho com a vida familiar ou evitar deslocações com o inerente custo ecológico e económico. Esse custo ecológico e económico, incluindo o de viagens aéreas, também pode ser evitado com as mais frequentes comunicações e reuniões por via telemática”, sugerem os bispos, apontando esta como uma das “boas” lições a retirar da pandemia.
Já quanto ao ensino à distância, a Igreja não lhe viu grandes vantagens: “Veio acentuar desigualdades, pois nem todas as famílias dispõem dos necessários meios informáticos, nem da capacidade de suprir funções que são próprias dos professores.”
Num olhar retrospectivo, a CEP congratula-se pelo facto de a necessidade de preservar vidas tenha soado mais alto do que a economia. “O confinamento, com todas as limitações que acarretou, salvou, de facto, muitas vidas humanas no nosso país”, observa o documento, numa mensagem que os bispos consideram que terá de se manter presente quando a crise se intensificar e começar a ganhar corpo a ideia de que a resposta à pandemia poderia ter sido menos severa.
Lamentando as mortes provocadas pelo coronavírus nos lares de idosos, a CEP considera que algumas poderiam ter sido evitadas “se esses lares tivessem beneficiado de outros apoios”. “Esta tragédia deveria despertar nas autoridades e em todos nós outra atenção para com as dificuldades por que passam os idosos, em especial e além do mais, a solidão e o abandono a que muitas vezes são votados. E também para as necessidades das instituições de solidariedade social que deles cuidam”, concluem.
A propósito do consenso instalado na sociedade portuguesa quanto ao “valor inestimável de cada vida humana”, que justificou o confinamento, os bispos não resistem a sustentar que tal consenso contraria a legalização da eutanásia, a qual “vem admitir que algumas vidas humanas, marcadas pela doença e pelo sofrimento, perderam valor e deixaram de ser merecedoras de protecção”.