Ministério Público e acusação
Não têm justificação as lamúrias de muitos quando procuram inculcar a ideia de um MP tenebroso, vingativo e preconceituadamente perseguidor.
Correm termos alguns processos-crime envolvendo entidades e personalidades do país – caso do BES, Ricardo Salgado, o ex-primeiro-ministro José Sócrates, António Mexia, Manuel Pinho, alguns autarcas e outros do género – e que, por isso mesmo, sendo arguidos naqueles processos, continuam a ser notícia nos meios de comunicação social. É óbvio que esta situação contextual seja assaz incómoda para os visados. Assim se explicam, aliás, os desabafos que por vezes exteriorizam, não poupando o órgão que está na base do surgimento desses processos – o Ministério Público (MP).
Como se sabe, o MP é uma instituição judiciária, fazendo parte integrante do 4.º órgão de soberania – o Tribunal. No quadro das suas múltiplas funções estatutárias (cfr. Lei n.º 68/2019 de 27 de Agosto) e representando o Estado, cabe-lhe o exercício da acção penal. Trata-se de uma atribuição de relevo, que se impõe na defesa da legalidade democrática, enquanto pilar que sustenta o Estado de Direito português. É o mesmo que dizer que pertence ao MP, em sede criminal, a defesa contenciosa dos valores do Estado. Estes valores, na fase de julgamento, podem não coincidir necessariamente com os valores de justiça, tudo dependendo da convicção do julgador face à consistência do material probatório apurado. Sem esta distinção dificilmente o cidadão entenderá porque a uma acusação do MP possa não corresponder necessariamente uma condenação.
O processo criminal inicia-se com o Inquérito, dirigido pelo MP sendo assistido e auxiliado por órgãos de polícia criminal. A investigação criminal é uma operação complexa em que as autoridades, atuando sob a dependência funcional do MP, realizam as diligências necessárias para descobrir o(a) autor(a) da ação anti-social. Esta complexa atividade envolve a colheita de uma variedade de elementos tais como vestígios ou marcas do ato aparentemente ilícito do ponto de vista criminal, para mais tarde, em conjugação com outros elementos, se aferir se há ou não indícios da prática desse mesmo ilícito pelo arguido e, como tal, previsto e punível pelo Código Penal. É de notar que o MP tem nas mãos a responsabilidade do integral apuramento factual, tendo, por isso, de nele intervir ativamente, obrigando o respetivo magistrado a não se confinar às quatro paredes do seu gabinete.
A acusação é uma peça jurídica que contém os elementos constitutivos do crime; tem de se apresentar firme e segura de modo a que os indícios possam configurar a força de provas em sede de julgamento. À sua elaboração o MP deverá ter todo o cuidado e empenho para que possa resistir às invetivas e tentativas da defesa para minimizar a consistência dos factos imputados ao arguido, pugnando para que ao julgador não subsistam quaisquer dúvidas na condenação do arguido. Mas se por alguma contingência a prova claudicar em julgamento – e tal pode ocorrer circunstancialmente, mesmo tratando-se de uma acusação bem elaborada –, cabe ao MP posicionar-se no sentido de uma não condenação do réu.
E nisto reside a grandeza da função do MP, na medida em que, estando obrigado, por dever de ofício, na condenação de um indiciado prevaricador anti-social, está simultaneamente, enquanto defensor da legalidade, obrigado a evitar qualquer condenação sem facto provado, pese embora, anteriormente indiciado.
Caem assim por terra as lamúrias de muitos quando procuram inculcar a ideia de um MP tenebroso, vingativo e preconceituadamente perseguidor. Compreende-se o lamento, mas não tem justificação. Como se referiu, é no julgamento que a “verdade jurídica” virá ao de cima e é nesta fase adjetiva que tudo se jogará, esgrimindo, rebatendo argumentos, neutralizando ambiguidades e definindo a exata dimensão dos factos.
Fica assim por explicar o fulgor com que alguns advogados, empenhados na defesa do cliente, vêm antecipadamente – ainda na fase de inquérito ou com acusação formulada – divulgar publicamente juízos de teor jurídico, criticando o MP de tropelias processuais, com insinuações de alcance pessoal, algo parecido com um “julgamento na praça pública”, procurando antecipadamente inocentar o cliente, algo que só em sede de julgamento é possível apurar. Esquecem-se que por essa via se avilta a dignidade funcional da advocacia e o prestígio de uma instituição jurídica como o MP, de que nenhum sistema jurídico ao nível mundial prescinde, e, sobretudo, se desvirtua as regras de uma boa administração de justiça.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico