Os indígenas do Brasil pedem socorro contra a covid-19

A falta de uma ação nacional no combate à pandemia do coronavírus pelo Presidente Jair Bolsonaro atingiu os povos indígenas em todas as regiões de norte a sul do Brasil, agravando a dramática situação já existente.

Existem hoje no Brasil 305 etnias com aproximadamente 900 mil indígenas que falam 274 línguas diferentes. A pandemia da covid-19 atingiu 94 povos indígenas, segundo a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB). Até ao dia 8 de junho havia 2600 indígenas infectados e 247 mortos.

Atualmente, o epicentro da epidemia é a Amazônia Brasileira, onde 104 profissionais de saúde foram contaminados com a covid-19 (76 na terra indígena Yanomami, mais 28 no Estado do Amazonas). Na tribo Kokama, no rio Alto Solimões, 50 indígenas morreram.

No estado de Roraima, após a morte de um Yanomami, em abril, a Associação Hutukara Yanomami decidiu que eles deveriam se mover ainda mais para dentro da floresta para escapar da contaminação. Mesmo assim, mais três Yanomami morreram e 90 estão infectados, dos quais 60% contraíram o vírus na Casa de Saúde Indígena na capital Boa Vista e 32% na TI Yanomami. As terras Yanomami estão invadidas por mais de 20.000 garimpeiros de ouro.

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab Amazonia) divulgou que as Associações do Kanamari do Vale do Javari e Associação dos Matsés do Alto Jaquirama enviaram uma carta para as autoridades denunciando e pedindo investigação sobre a proliferação da covid-19 pelo exército brasileiro e Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) na Terra Indígena Vale do Javari, fronteira com Peru e Colômbia especialmente na calha Medio Rio Javari. Essa região tem seis mil indígenas contactados e 16 povos isolados.

O The Intercept mostrou um vídeo divulgado no mês de abril e distribuído aos integrantes militares e civis onde o general do Exército Brasileiro Antônio Manuel de Barros, de 57 anos, fala para que seus comandos buscassem se contaminar incentivando o surto de coronavírus para “imunizar tropas” que trabalham em abrigos de refugiados da Venezuela na divisa do Estado de Roraima. Os militares já eram 26% dos casos de covid-19 no Estado. O general Barros é o comandante militar da Operação Acolhida e substituiu o general Eduardo Pazuello, agora ministro interino da Saúde.

Na ultima coletiva de imprensa do Governo Federal sobre covid-19, o diretor da Secretaria Especial de Saúde Indígena Robson Santos relatou que a Operação Acolhida está trabalhando nos dois distritos Yanomami e Leste em Roraima.

Mulher Yanomami a pintar-se, vila de Demini, Roraima Rosa Gauditano
Acampamento Terra Livre, 2019, Brasília Alberto César Araujo
Pará, Brasil, 2016: vista aérea de áreas de desmatamento na floresta amazónica brasileira, perto da bacia do rio Tapajós, causada por mineração ilegal de ouro (à direita) e criação de gado (à esquerda) DR
Povos indígenas nas ruas do centro de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, em Abril de 2020) Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real
Manaus, 27.04.20: Enterros colectivos no cemitério público de Nossa Senhora de Aparecida Alex Pazuello/Semcom
Desmatamento ilegal em Manicore, Amazonas Bruno Kelly/Greenpeace
Terra Indígena Yanomami, Roraima Rosa Gauditano
Manaus, 29/04/2020: Enterros colectivos no Cemitério N.S de Aparecida em Taurmã Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real
Enterros de indígenas mortos por covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, no cemitério Parque da Saudade Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real
Beruri, Amazonas: o desmatamento em áreas protegidas para o agronegócio, especialmente plantações de soja e milho, bem como a criação de gado, fazem da Amazónia um dos ecossistemas mais frágeis diante da acção humana DR
Manaus, 29/04/2020: Enterros colectivos no Cemitério N.S de Aparecida em Taurmã Fernando Crispim/La Xunga/Amazônia Real
Enterros de indígenas mortos por covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, no cemitério Parque da Saudade Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real
Manaus, 27.04.20: Enterros colectivos no cemitério público de Nossa Senhora de Aparecida Alex Pazuello/Semcom
Protesto de três mil indígenas do Acampamento Terra Livre em Brasília, 2017 Rogério Assis/MNI
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Mulher Yanomami a pintar-se, vila de Demini, Roraima Rosa Gauditano

Em Manaus, o caos é total. O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) confirmou que muitos pacientes indígenas com outras doenças se contaminaram na Casa de Saúde Indígena, em hospitais estaduais e municipais e depois voltaram para suas aldeias…

Os hospitais da cidade de Manaus estavam com a sua capacidade máxima e agora a situação está mais crítica ainda no interior do Amazonas. O único hospital com UTI do interior do Amazonas fica na cidade de Tefé, situada a 522 km de Manaus.

A segunda região do Brasil mais atingida pela covid-19 é o Nordeste/Minas Gerais/Espírito Santo, onde os indígenas vivem nas regiões mais pobres, até agora com 21 mortos.

Como está acontecendo no Brasil inteiro, os números sobre covid-19 estão subnotificados. Sonia Guajajara, presidente da APIB, revela que “os números apurados pelo movimento indígena, quando comparados aos da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), revelam uma discrepância absurda. Além da negligência do Estado brasileiro, há um racismo institucionalizado”.

O diretor da Sesai, Robson Santos, afirmou na última coletiva de jornalistas que a letalidade dos indígenas aldeados é de 3,9%, enquanto que a Articulação dos Povos Indígenas (APIB) confirma 9,7% de letalidade. A APIB faz tabulação de casos de todos os indígenas aldeados e não aldeados do Brasil.

O Brasil tem 34 Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEI), responsáveis pelo atendimento dos indígenas aldeados, mas 36% dos indígenas do Brasil vivem em área urbana e não são atendidos pelos DSEI e sim pelo Sistema Unificado de Saúde (SUS), onde os indígenas são geralmente discriminados.

A Fundação Nacional do Índio (Funai) não está fazendo o seu trabalho como deveria. O órgão é atualmente chefiado pelo delegado Marcelo Xavier, que já trabalhou como assessor dos ruralistas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Incra [1] e da Funai [2].

Marcelo Xavier, perguntado sobre o que o órgão está fazendo para defender os Yanomami do garimpo de ouro nas terras Yanomami, explicou que está monitorando o garimpo com 28 barreiras sanitárias ao invés de tirar o garimpo das terras Yanomami para defender os indígenas.  

A falta de uma ação nacional no combate à pandemia do coronavírus pelo Presidente Jair Bolsonaro atingiu os povos indígenas em todas as regiões de norte a sul do Brasil, agravando a dramática situação já existente. Neste último ano, 150 terras na Amazônia sofreram invasões de grileiros, madeireiros e garimpeiros, instigados pelo Governo Federal. Estão queimando florestas, assassinando lideranças e, além disso, o Governo Federal apoia que os missionários evangélicos catequisem a qualquer custo os indígenas.

Há alguns dias, o povo brasileiro assistiu perplexo ao vídeo liberado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de uma reunião do Presidente Bolsonaro com seus ministros em Brasilia, onde o ministro da Educação Abrahan Weintraub disse que odeia os Povos Indígenas e o ministro do Meio Ambiente Ricardo Sales falou sobre aproveitarem a situação da pandemia do coronavirus para aprovarem as reformas de desregulamentação e simplificação para mudarem as regras ambientais a favor dos mais poderosos.

No mês de maio, o Supremo Tribunal votaria o PL2633, que estabelece o chamado “Marco Temporal” [3] que limita as reivindicações indígenas, em vez de reconhecer suas demandas tradicionais ou históricas por terras. A decisão 001/2017 da Procuradoria Geral da República (AGU) é inconstitucional e está sendo usada para legalizar invasões, legitimar despejos e ocultar atos violentos que afetaram os povos indígenas antes da consagração da Constituição Federal de 1988. Se a decisão for contra os povos indígenas, o Brasil e o meio ambiente mundial serão diretamente afetados. O juiz Edson Fachin adiou a votação por causa da pandemia devido à pressão de povos indígenas e organizações de direitos humanos até que o tribunal possa fazer julgamentos presenciais.

Apesar de tudo isso, os indígenas brasileiros nunca estiveram tão organizados. Passado maio, a APIB realizou uma grande Assembleia Nacional de Resistência Indígena online para tratar de assuntos como os diagnósticos regionais sobre a covid-19 nas aldeias.

Acostumados a lutar pelos seus direitos há 520 anos, os indígenas estão se unindo para encontrar novos caminhos e exigirem melhores condições de assistência à saúde, defesa de suas terras e do meio ambiente.

[1] Instituto Nacional de Assentamento e Reforma Agrária
[2] Em 2017, o inquérito parlamentar presidido pelo Farmers ‘Caucus teve como objetivo processar antropólogos, povos indígenas, funcionários da Funai e do Incra e membros do executivo, além de ONGs. A idéia era encerrar a Funai, interromper a reforma agrária e alterar os critérios de demarcação de terras para povos indígenas e antigas comunidades escravas (quilombola)
[3] Marco Temporal – “Limite de tempo”. A ideia do projeto de lei é estabelecer que as reivindicações indígenas por terras só seriam reconhecidas por lei se os indígenas estivessem ocupando aquele pedaço de terra em 1988, ano em que a atual Constituição Brasileira foi consagrada.

Rosa Gauditano é fotógrafa, jornalista e ativista. Ela tem documentado os povos indígenas das mais variadas etnias e regiões do Brasil há mais de 30 anos. Rosa já fotografou as comunidades de índios Karajá, Kayapó, Tucano, Waurá, Yanomami, Xavante, Guarani e Pankarau. Em 2004, em parceria com indígenas Xavante, criou a organização não governamental Nossa Tribo, dedicada a fazer uma ponte entre as cidades e aldeias indígenas. Ensinou fotografia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e trabalhou para o jornal Folha de S. Paulo e revista Veja.
 É autora dos livros: Índios. Os Primeiros Habitantes, Raízes do Povo Xavante, Festas de Fé, Guarani M’Byá na Cidade de São Paulo e Povos Indígenas no Brasil.

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