A história não se apaga
O vandalismo exercido sobre a história em várias cidades norte-americanas e europeias revela um moralismo intolerante e, muitas vezes, ignorante sobre a história.
A presente convulsão social decorrente da infame morte de George Floyd, alastrou-se também para o passado. Os novos revisores da história têm realizado julgamentos sumários a um rol de figuras históricas, mais ou menos consensuais, através do vandalismo de estátuas em sua homenagem.
Vários réus já foram presentes ao tribunal da rua por todo o Ocidente: o polémico Edward Colston, que ficou para a história como uma “moeda de duas faces”, por um lado traficante de escravos, por outro dedicado filantropo; o audacioso General Robert E. Lee, que comandou as forças da Confederação durante a Guerra Civil Americana e que apresentou ao longo da sua vida posições ambivalentes face à escravatura, muitas vezes polémicas para muitos dos seus pares, totalmente inflexíveis com a hipótese de um afro-americano poder vir a ser livre; Cristóvão Colombo, um homem do seu tempo, que conquistou novos horizontes que trouxeram prosperidade e conhecimento ao Velho Mundo, certamente à custa de muitas vidas; e, estranhamente, até o “nosso” Padre António Vieira, sobejamente afamado por combater a discriminação contra Cristãos Novos, defender a abolição da escravatura e a protecção de indígenas sul-americanos.
O vandalismo exercido sobre a história em várias cidades norte-americanas e europeias revela um moralismo intolerante e, muitas vezes, ignorante sobre a história. Trata-se de um movimento de massas que, sob o signo altruísta da solidariedade e fraternidade com o próximo, censura aquilo que defende: a liberdade.
As sociedades verdadeiramente livres não rejeitam a sua história, decapitando-a ou pintando-a com as suas cores. As sociedades livres não destroem estátuas e não queimam livros, as sociedades livres lêem o The Wealth of Nations, o Mein Kampf, o Das Kapital, a Bíblia, o Corão e a Torá.
Os actos de vandalismo transmitidos em prime time para todo o mundo certamente remeteram muitos telespectadores para as imagens da destruição de monumentos da cidade de Palmira às mãos do Estado Islâmico, há cinco anos. A intolerância tem vários rostos e quando não é detectada na sua origem, é detectada no seu resultado – a destruição.
Como já foi escrito e reescrito, a memória de George Floyd ou de qualquer outra vítima de uso abusivo da força, com ou sem intenções racistas, não deve ser manchada por actos de pilhagem e roubo, ou tornar-se refém de agendas políticas com posições revisionistas e censórias da história.
A história deve ser analisada e contextualizada; até poderá ser criticada ou elogiada à luz de um qualquer presente, fazendo a ressalva que o presente só se forma depois de serem cometidos erros ou realizados progressos passados. Mas a história não se deve esquecer ou apagar. É injusto fazê-lo para os que a viveram, é injusto fazê-lo para os que vivem hoje e para os que viverão amanhã.