Todos somos importantes e mais nove lições que aprendemos com a pandemia
Seis meses depois, o mundo mudou devido a um microscópico coronavírus. Sublinhámos a importância da ciência e do Serviço Nacional de Saúde. E inventámos uma nova forma de vida, mais distanciada fisicamente, mas também mais interconectada.
Foi detectado pela primeira vez em Dezembro de 2019, em Wuhan, capital da província chinesa de Hubei. Não se sabia nada sobre ele: no início de 2020, quando surgiram as primeiras notícias sobre o vírus, era descrito como uma “estranha forma de pneumonia”.
Passaram seis meses. A investigação científica avançou a passos largos desde essa altura, mas ainda há muitas coisas que não se sabem sobre o SARS-CoV-2. No entanto, já se podem tirar as primeiras conclusões sobre a pandemia em Portugal. E estas foram dez coisas que aprendemos.
O conhecimento muda; as indicações das autoridades de saúde também
Ao início, dizia-se que era improvável que o vírus chegasse a Portugal. Afinal, parecia mais ou menos contido na China. Depois foram as máscaras: o seu uso foi desaconselhado nas primeiras fases da pandemia — podiam ser mal-usadas e não existiam em número suficiente para todos —, mas não as usar agora nos transportes públicos pode valer multa.
O conhecimento científico não é estático e as conclusões mudam a cada novo dado relevante que se analisa. Por isso, é normal que as autoridades de saúde, que trabalham com base nesse conhecimento científico, também alterem as suas recomendações. Aconteceu com a Direcção-Geral da Saúde portuguesa, mas também a nível internacional com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Aconteceu com as informações sobre a possibilidade de uma segunda vaga da doença: a OMS disse que aconteceria, voltou atrás e alertou para um segundo pico (e não vaga) e agora é mais ou menos consensual entre cientistas e autoridades de que é uma possibilidade, mas que vários países estão mais bem preparados para ela.
Também no que respeita às máscaras a opinião da Direcção-Geral de Saúde foi mudando. Num primeiro momento apenas doentes e cuidadores eram instados a usá-las, mas em meados de Abril começaram a ser aconselhadas a todas as pessoas num cenário pós-confinamento. Para a DGS, Centro Europeu de Controlo de Doenças e para a congénere norte-americana é ponto assente que se toda a gente usar máscara estaremos todos mais protegidos — mesmo que sejam máscaras comunitárias.
Durante vários meses, a Organização Mundial de Saúde teve uma opinião diferente e recomendava-as às pessoas saudáveis apenas se tivessem de cuidar de alguém doente. Isso mudou esta sexta-feira: a organização passou a recomendar a utilização de máscaras comunitárias. Apesar de não existir evidência científica robusta que sustente esta medida, há “evidências observacionais” que justificam o seu uso pela população.
Com melhor ou pior comunicação, as decisões sobre esta doença desconhecida foram tomadas à luz da melhor informação disponível no momento. E por isso foram mudando.
O teletrabalho é possível – e até desejável
É uma discussão que já se prolongava há vários anos, mas que ganhou novo fôlego com o início do confinamento. Várias empresas foram obrigadas a adaptar-se e a desmaterializar o seu trabalho de um dia para o outro, quase sem preparação, mas a avaliação parece ser positiva: metade das firmas que adoptaram teletrabalho tenciona mantê-lo, de acordo com um inquérito feito a uma amostra de 954 empresas.
Há pontos positivos e são inegáveis. Menos horas perdidas em transportes, o fim da hora de ponta e maior flexibilidade entre a vida pessoal e profissional são apenas alguns deles. Mas também há desafios, como traçar de forma clara o horário de trabalho e de descanso, as interrupções ao direito a desligar ou a interacção que se perde sem a presença física no local de trabalho – todos pontos que deverão ser discutidos nos próximos meses.
O Rt é importante, mas é apenas uma das variáveis que permitem tomar decisões
Foram duas das expressões que entraram para o vocabulário de muitos portugueses: primeiro o R0 e depois o Rt. Ambas dizem respeito ao número médio de contágios que uma pessoa infectada pode provocar.
O primeiro valor, R0, mede o número de contágios que acontecem quando a doença tem condições ideias para se disseminar (ou seja, sem medidas de confinamento, sem cuidados). O segundo passa a ser relevante mais tarde, depois de aplicadas as medidas para conter a propagação da doença, quando “o número médio de contactos que um infeccioso tem começa a diminuir”, explicou Manuel Carmo Gomes, professor de Epidemiologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa ao PÚBLICO em Abril.
É uma variável que permite aos governos de cada país tomar decisões sobre o progresso da pandemia e a segurança de reabrir a economia. Alguns países, como a Noruega, determinaram que o valor ideal para acabar com o confinamento era R 0,7 — um valor acima de zero, que significa que já não há contágio, mas abaixo de um, o que significa que, em média, um infectado não origina um outro caso. Não é um valor mágico, nem uma regra que se aplique a todos os países. Não só não tem base teórica como há mais factores a ter em conta quando se toma decisões sobre confinamento ou desconfinamento.
Em Portugal (como noutros países), usaram-se mais indicadores para além do Rt. Entre eles, a capacidade de testagem do país, a taxa de ocupação das unidades de cuidados intensivos ou o número de pessoas internadas e que estão a receber tratamento em casa. Porque apenas a conjugação de todos estes factores permite ter uma ideia clara sobre a pressão colocada sobre o sistema de saúde e a velocidade de transmissão da doença num dado momento.
Aprender a valorizar o SNS
Mesmo pressionado, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) conseguiu dar resposta ao aumento de pedidos. Adaptou-se e organizou-se face a uma nova ameaça. Entre quem recuperou da covid-19 há quem lhe deva “a vida”. E a premência da ameaça deu novo rumo às reivindicações do pessoal médico: mais equipamento, melhores condições de trabalho, uma remuneração mais digna a quem se coloca à mercê da doença.
“Não era preciso uma pandemia para mostrar a importância de ter um Serviço Nacional de Saúde”, em comparação com sistemas onde ele não existe como o norte-americano, sublinhava Rui Branco, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, numa entrevista ao PÚBLICO no final de Abril. “Num país pobre e atrasado, o SNS representou um enorme salto de qualidade cidadã e democrática.”
Nem tudo foi perfeito. Para se colocarem mais meios e recursos humanos no combate à pandemia ficaram quase 1,4 milhões de consultas por fazer e 51 mil cirurgias. Mas a pandemia veio mostrar, mais uma vez, por que é necessário ter um Serviço Nacional de Saúde.
Todos são importantes
Já sabíamos, mas a pandemia veio acentuá-lo: para fazer frente a uma ameaça comum é preciso responder como um todo. E houve múltiplos exemplos disso, do sector público e do privado.
As Forças Armadas cumpriram o seu propósito de apoiar os portugueses e fizeram-no em várias frentes: desinfectaram lares de idosos e escolas, colaboraram na distribuição de alimentos às pessoas em situação de sem-abrigo de Lisboa e montaram hospitais de campanha e estruturas de apoio de norte a sul do país.
O sector privado também se voluntariou para ajudar. Desde logo, os hospitais privados que também receberam doentes com covid-19, uma ajuda importante como “resposta complementar ao SNS”, como descreveu o secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales em Março. Mas também as empresas privadas que passaram a fabricar equipamentos de protecção individual e álcool gel para quem estava na linha da frente.
E eram muitas pessoas — mais do que os médicos e enfermeiros que tratavam doentes. Dos empregados de supermercados aos motoristas e maquinistas de transportes públicos, todos os que foram trabalhar apesar dos riscos que corriam mereceram o reconhecimento dos portugueses durante a fase mais crítica da pandemia.
“Achatar a curva” era (e é) importante
Uma missão: impedir que uma enchente de casos positivos inundasse os hospitais e centros de saúde portugueses, sob o risco de não existir resposta para eles. Ou seja, achatar a curva epidémica de forma a não ultrapassar a capacidade de resposta do sistema nacional de saúde. A campanha para incentivar os portugueses a ficar em casa e minimizar os contactos parece ter tido resultado: conseguiu-se evitar o crescimento exponencial da doença em Portugal.
“Conseguimos evitar o crescimento exponencial, mas também ficaram à vista algumas das insuficiências do sistema, quer do ponto de vista dos sistemas de informação, quer dos recursos humanos e, numa fase inicial, dos testes e do equipamento de protecção individual”, afirma Ricardo Mexia, num balanço sobre os três meses de pandemia em Portugal. O SNS conseguiu responder ao aumento da procura “à custa de ter interrompido tudo o resto” e “a situação acabou por evoluir num sentido positivo”.
Febre e tosse não são os únicos sintomas. E até assintomáticos transmitem a doença
Primeiro, achou-se que a doença não se transmitia entre humanos. Depois, percebeu-se que sim – e a um ritmo rápido. Acreditou-se que apenas se transmitia entre os que tinham sintomas como febre, tosse e dificuldades respiratórias, mas não – até pessoas sem sintomas podem transmitir a doença. E os sintomas mais comuns não começam nem acabam na tosse e febre.
Vómitos, diarreia, perda de olfacto ou dor no peito são alguns dos manifestações que a comunidade médica não ignora na hora de decidir testar um doente. Mas há quem não os tenha de todo, apesar de ter capacidade de disseminar o vírus sem o saber. Em Portugal “haverá quatro, cinco ou talvez mais casos de infecção que passam sem sintomas”, afirmava Henrique Barros, presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade e do Porto, no início de Maio. Por isso é que a utilização das máscaras em locais fechados é tão importante: pode evitar a propagação do vírus a partir de um assintomático.
A nossa relação com as cidades pode (e vai) mudar
Mais espaços públicos e uma mobilidade mais suave. A pandemia veio mudar a forma como olhamos para as cidades e as vivemos, enquanto andamos sob uma batuta clara: distanciamento físico. Mas como o podemos manter em cidades apinhadas?
Desta pandemia retiram-se lições valiosas. É preciso criar espaços públicos e “inverter um pouco a lógica de alta densidade em favor das médias e até baixas”, explicava José Rio Fernandes, geógrafo e professor catedrático na Universidade do Porto em Abril, de mãos dadas com uma “maior valorização do espaço verde” nas urbes.
O teletrabalho veio mudar o significado de “hora de ponta” e retirar carros das cidades. Em Madrid, fecharam-se avenidas aos carros para as abrir às pessoas e a outras formas de mobilidade suave, como as bicicletas. Noutras capitais europeias, como Berlim, abriram-se ciclovias temporárias para dar resposta ao aumento da procura. Em Portugal, planeiam-se mais quilómetros de ciclovias em Lisboa e no Porto para os próximos anos. Por enquanto, sabe-se que as vendas deste meio de transporte dispararam. E não é descabido pensar que este novo tipo de mobilidade veio para ficar.
A pandemia veio ainda mostrar que há desafios para cidades como Lisboa e Porto, muito dependentes do turismo. Com o sector a passar uma das maiores crises da memória recente, “é importante que as cidades sejam diversas e não dependam apenas de um sector”, aconselhava Virgílio Borges Pereira, sociólogo da Universidade do Porto, também em Abril.
Podemos nunca ter uma vacina
É um oásis no deserto: a existência de uma vacina que nos permita voltar à vida normal pré-pandemia. E pode ser uma expectativa sem fundamento.
Há pelo menos 123 candidatas a uma vacina para o SARS-CoV-2, de acordo com os números da Organização Mundial de Saúde, publicados a 2 de Junho. E há dez que já estão a dar os primeiros passos nos ensaios clínicos – os primeiros testes da segurança de uma vacina, feitos num grupo de voluntários. Apesar dos esforços, a prometida vacina poderá só estar disponível dentro de um ano – ou nem isso.
“Há cerca de sete coronavírus que infectam os humanos e nunca tivemos uma vacina para nenhum deles. Há muitas razões pelas quais isto não é assim tão simples”, afirmou o imunologista Daniel M. Davis, numa entrevista ao PÚBLICO sobre a doença. “Penso que há uma lacuna no nosso entendimento de como uma resposta destas é gerada e isso significa que parte da criação de uma vacina requer algum nível de tentativa e erro para descobrir o que funciona. Também é verdade que a infecção por alguns destes vírus pode não dar, por si só, uma imunidade duradoura. Podemos ter de fazer algo no contexto da vacina para ter a certeza de que haja uma resposta forte e de longa duração. É difícil.”
Devemos ouvir mais os cientistas
Os cientistas não têm uma bola de cristal para nos darem todas as respostas, mas possuem as ferramentas de que uma sociedade precisa para se tornar resiliente face a ameaças como esta. Já era mais ou menos sabido que chegaria uma nova pandemia, mas ninguém lhes conhecia os contornos – nem mesmo os cientistas, que ainda estão a aprender sobre esta doença.
Apesar disso, a experiência e investigação feitas para outras pandemias ajudaram-nos nesta. O SARS-CoV-2 é um coronavírus, tal como os quatro que habitualmente causam constipações no Inverno. “Outros dois, mais recentes e mais mortais, foram o SARS, que desapareceu em 2003, e o MERS, que ainda causa pequenos surtos no Médio Oriente, em regiões de temperatura alta. Mas estes coronavírus são menos contagiosos que a covid-19. Além disso, são mais fáceis de controlar porque, ao contrário da covid-19, não têm um período tão longo durante o qual o paciente infectado está sem sintomas, mas transmite o vírus a outras pessoas”, explicou Manuel Carmo Gomes, num texto que escreveu para o PÚBLICO.
O que aprendemos sobre estes dois vírus pode ajudar-nos a lidar com este, mais recente. E indica-nos um caminho: “Tudo ponderado, a maioria dos epidemiologistas está convencido de que a covid-19 veio para ficar.”