Revolta na América

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A América tem um Presidente que virou o seu discurso de ódio contra os manifestantes Reuters/PIROSCHKA VAN DE WOUW

“A glorificação de uma raça e o humilhar de outra — ou de outras — foi e será sempre uma receita para o homicídio.”

James Baldwin

A revolta na América contra a violência racista é um acontecimento extraordinário, com o potencial de garantir aos negros todas as conquistas da revolução americana. A revolução de 1776 não aboliu a escravatura, “a vida, a liberdade e a propriedade privada” só triunfaram como um direito inalienável para todos os brancos.  A revolta não é um grito de cólera contra um ato isolado, contra o assassinato de George Floyd por quem o devia proteger, é a manifestação da recusa de um sistema que permite que uma parte dos seus cidadãos sejam tratados como “sub-homens”, doloroso paradoxo numa sociedade que através da tecnologia, do transhumanismo, procura de novo criar “super-homens”.

Em plena pandemia, ignorando o risco da contaminação, centenas de milhares de cidadãos descem à rua e manifestam, pacificamente, a sua vontade de dar o salto que só o fim de um sistema pode trazer. 

A violência racista é endémica num país onde a segregação racial só foi ilegalizada no final dos anos 60, onde a lei a tipificar o linchamento como crime federal foi apenas aprovada este ano. Como cantava Billie Holiday nos anos 30, em Strange Fruit “(…) As árvores do Sul dão um fruto estranho (…)”, canção escrita por Abel Meeropol, judeu americano a quem as notícias de linchamentos mostravam que também a América era capaz de negar a humanidade a uma parte da sua população.

A revolta na América põe diretamente em causa Trump, um Presidente que se sente próximo dos defensores da supremacia branca, e assim alimenta o sentimento de impunidade dos racistas. O voto em Trump foi, em muito casos, um voto anti-negro e anti-hispânico. Trump tem desprezado as mortes por Covid-19, um terço das quais de afro-americanos — não obstante só representarem 13% da população. Não, os negros não morrem mais de Covid-9 por serem negros, morrem mais por força da sua situação social e da inexistência de um sistema nacional de saúde, o que os torna, como os brancos pobres, mais vulneráveis às doenças.

A América tem um Presidente que perante o horror do crime cometido virou o seu discurso de ódio contra os manifestantes chamando-lhes ‘pulhas’ e incentivou a violência policial “quando as pilhagens começam, os tiros começam”, repetindo as palavras usadas por um chefe da polícia, em 1967, para ameaçar os que se manifestavam pelos direitos cívicos.

Nem todos os manifestantes são pacifistas, como o era Martin Luther King, e a violência de alguns é alimentada pela retórica belicista de Trump, que pensa tirar proveito eleitoral do caos. Porém, como diz Trevor Noah “(…) quando o contrato social não se aplica a uma parte da sociedade é preciso compreender porque é que essa parte não se sente obrigada por ele (…).”  

O combate contra o racismo não pode ser deixado só aos afro-americanos. Americanos de todas as origens juntam-se aos protestos, incluindo polícias brancos e líderes religiosos, sinal de que a unidade, a que apelou Obama, se pode concretizar, e de que a revolta pode mudar a América.Não será a ameaça de intervenção militar de Trump que fará recuar os revoltosos.

As manifestações de apoio de Berlim a Iblidh, na Síria, sob os bombardeamentos do regime de Assad, mostra a consciência de que a América é a fronteira de todos no combate pela liberdade contra o nacional populismo. A presidência Trump foi um estímulo para as correntes autocráticas e racistas. Um segundo mandato a ser conferido será uma catástrofe. 

O Portugal da revolução que pôs termo à ditadura que vivia da brutal exploração colonial, herdeira da escravatura, tem de ser exemplar no combate político e judicial contra o racismo. Não se pode continuar a dizer que o melhor é ignorar as declarações racistas da extrema-direita.  

A revolta em curso na América não me choca, entusiasma-me, porque sei que os demagogos racistas querem desconstruir tudo aquilo por que lutamos: igualdade e justiça para todos, independentemente da cor da pele e da situação social. A extrema-direita americana, com Trump, quer reverter as conquistas do movimento pelos direitos civis dos anos 60, mas encontram pela frente a oposição das instituições da democracia americana e da sua sociedade civil. O racismo pode ser vencido se o levarmos a sério, se o considerarmos como ameaça que é ao que de mais essencial existe nas conquistas da civilização humana: a capacidade de nos libertamos da lei da selva e de fazermos do ‘outro’ nosso igual.

O combate à Covid-19 é parte essencial desta luta contra a discriminação, desta luta pela igualdade. Para tanto, os governos democráticos têm de ser capazes de mostrar que não há discriminação no tratamento das pessoas, que os mais desfavorecidos, nomeadamente as minorias, têm, pelo contrário, uma atenção especial, a nível nacional e a nível global.

Nas ruas de Minneapolis, Los Angeles ou Nova Iorque não é só o futuro da América que está em causa, mas a habilidade de construirmos um mundo melhor, por isso o sucesso da revolta americana  é tão decisivo.

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