A questão sefardita: reunir Portugal
A lei não é acto simbólico de reparação histórica. A lei é para o presente e o futuro, não para o passado. Por tudo, a alteração da lei não só não é precisa, como seria um gravíssimo erro político e histórico.
O que pedimos é o que tem de ser. Defenda-se a lei de 2013, uma lei justa, que esclareceu para os descendentes dos sefarditas expulsos a possibilidade de se naturalizarem como quaisquer outros descendentes de portugueses ou membros de comunidades de ascendência portuguesa. Que o PS retire a proposta que apresentou. Que, a manter-se, a 1.ª Comissão – por sinal, de Assuntos Constitucionais e Direitos, Liberdades e Garantias – trave o ataque injusto, reprovando a proposta do PS numa questão que nada tem a ver com o processo legislativo aberto. Que, se a Comissão o não fizer, a votação dessa proposta seja avocada ao plenário e este reprove-a, honrando a unanimidade de 2013. Que, se assim não for, o Presidente da República vete a lei que integre norma tão retrógrada e lesiva da justiça e de direitos fundamentais.
Só por falta de noção das proporções se avançou para a tentativa enviesada de rever a lei por este método e este processo, com o conteúdo que foi sendo conhecido e tão clamorosa falta de preparação e de fundamentos documentados.
O objecto causou surpresa e controvérsia: alvejar a lei que, em 2013, com aprovação unânime da Assembleia da República, restabeleceu os laços comunitários com os descendentes dos judeus sefarditas portugueses expulsos no séc. XV. O método “já agora, alembrei-me” foi o escolhido pelos deputados do PS, em absoluto segredo até ao mais tarde possível. E o processo foi encavalitarem-se num processo legislativo alheio e sobre problemas distintos.
A história, deplorável num Parlamento que preza a democracia, conta-se breve. No início da legislatura, BE, PAN, PCP e Livre apresentaram projectos de lei relativos à nacionalidade, cuidando sobretudo de problemas de filhos de imigrantes, aqui nascidos, e afrodescendentes também aqui nascidos, filhos de pais a que, durante a descolonização, foi bruscamente retirada a nacionalidade portuguesa, pelo Decreto-Lei n.º 308-A/75, de 24 de Junho. Houve debate na generalidade e dois foram aprovados, em 13 de Dezembro, para seguirem para a especialidade: PAN e PCP. No debate, o PS nada disse sobre o que queria contra o regime dos judeus sefarditas. Mas, a 28 de Abril, tirou da mochila uma proposta de alteração extravagante, já substituída por outra ainda pior. Pior era impossível. Falta de respeito por um processo legislativo decente, transparente, leal. O que pesam os cidadãos neste manejo impróprio do fabrico das leis?
O ataque à lei de 2013, que resultou de iniciativas do PS – pasme-se! – e do CDS, apoia-se em exageros não comprovados, nem esclarecidos. Na fundamentação da proposta inicial do PS, vai-se ao extremo de dizer que Estados terceiros poderão deixar de reconhecer a “nacionalidade [portuguesa], o que pode prejudicar os portugueses no estrangeiro, incluindo na União Europeia”. Fala-se repetidamente numa misteriosa “avaliação” – e chega a dizer-se que esta verificou efeitos perversos tão amplos que recomendou a extinção do regime de 2013. Ninguém mostra essa “avaliação”, nem diz quem a fez e onde está. Invocam-se números de enxurrada, mas ninguém explica como é que, sendo tão maus os requerimentos, a naturalização terá sido concedida aos torpes candidatos – o despacho é discricionário, como se sabe. Difama-se a lei como puro negócio de venda de passaportes europeus, sem provar com verdade. Difamam-se os advogados, mas nada se mostra. Fingindo conhecer práticas tão negativas e ofensivas da lei e da deontologia, não mostram uma só denúncia que houvessem feito à Ordem dos Advogados ou perante a Justiça.
É mentira que a lei de 2013 tivesse feito discriminação positiva dos judeus sefarditas e seus descendentes. A lei concretizou que as comunidades sefarditas de origem portuguesa são comunidades de ascendência portuguesa para efeitos do regime de naturalização previsto desde 1981 e especificou em que termos podem concorrer à possibilidade de naturalização. É disparate pensar que os descendentes de sefarditas têm um regime especial de direito de sangue. Como para quaisquer candidatos à naturalização, o regime não é ius soli, nem ius sanguinis. Os sefarditas não são portugueses por nascimento e porque sim; como quaisquer outros naturalizados, dependem de preencher um conjunto de requisitos e de, no fim do processo, o Governo conceder a nacionalidade. É dupla falsidade dizer que o regime em causa criou, de uma assentada, dezenas de milhões de novos candidatos potenciais à nacionalidade portuguesa, independentemente de qualquer ligação ou intenção de ligação à sociedade portuguesa. É absurdo fantasmático falar ad terrorem de dezenas de milhões de candidatos. E a lei de 2013 exige aos candidatos “demonstração da tradição de pertença a uma comunidade sefardita de origem portuguesa” e “requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal”. A lei não podia ser mais clara.
A lei não é acto simbólico de reparação histórica. A lei olha as comunidades sefarditas de origem portuguesa como uma parte de Portugal, em cuja formação participaram até à expulsão; e abre aos seus membros a possibilidade de obterem a nacionalidade para recomeçarmos caminho comum. A lei é para o presente e o futuro, não para o passado.
Para contrariar eventuais abusos, que sempre podem ocorrer em qualquer país, o governo dispõe de todos os instrumentos necessários: a diplomacia, onde se justifique ou imponha; a acção política e administrativa, apresentando publicamente o regime legal de forma correcta e contrariando qualquer publicidade fraudulenta; o diálogo sério, interessado e permanente com as comunidades judaicas, principais interessadas (como se tem visto) no não desvirtuamento da lei; a afinação do regulamento com base nos princípios de pertença e de ligação a Portugal que já constam da lei; a participação às autoridades judiciárias quando houver fundada suspeita de factos que justificam a competente investigação e eventual sanção. Por tudo, a alteração da lei não só não é precisa, como seria um gravíssimo erro político e histórico.
José Ribeiro e Castro, advogado e antigo líder do CDS
Ricardo Sá Fernandes, advogado e membro do Conselho de Jurisdição do Livre
Sofia Galvão, advogada