Qual o papel dos professores? Onde se desenham as linhas vermelhas? E, quando chegam à televisão — e especificamente aos programas de entretenimento —, estarão a comprometer a sua credibilidade?
Desde o arranque do ensino à distância, levado a casa dos alunos através do pequeno ecrã, vários professores acabaram por ser solicitados para diferentes formatos televisivos. Entre outras situações, a professora Isa, dos primeiros anos do ensino básico, compareceu ao lado de Ricardo Araújo Pereira no seu Isto é Gozar com Quem Trabalha e duas docentes de inglês viram o seu “rap” tornar-se viral — sobretudo depois de a apresentadora norte-americana Ellen DeGeneres ter partilhado no seu Instagram o momento divertido em que as professoras ensinam os meses do ano aos mais pequenos durante as aulas do #EstudoEmCasa (era um GIF que servia de resposta à pergunta “por quanto mais tempo vai durar a quarentena?”).
Mas foi a aparição das mesmas duas professoras no programa da manhã da TVI — no mesmo dia em que compareceram, mais tarde, no programa da RTP 5 Para a Meia-Noite, com Filomena Cautela e Inês Lopes Gonçalves — que acabaria por causar mal-estar entre alguns colegas de profissão. O momento televisivo, que colocou as docentes Helena Ramos e Luísa Henriques, no final da semana passada, a simularem uma aula ao apresentador Manuel Luís Goucha e aos seus convidados, acabou por dar origem a uma reflexão no popular blogue Com Regras e abrir o debate.
Na altura, o autor do blogue, o professor Alexandre Henriques escreveu “que os professores são uma classe profissional com um estatuto intelectual que deve ser preservado e não confundido com entertainers televisivos, envolvidos numa competição de audiências em programas de companhia/entretenimento”. Ao PÚBLICO, Alexandre Henriques defende que “não se pode querer passar da figura de professor para entertainer”, ainda que admita que a imagem de uma pessoa distante associada a um professor esteja em processo de renovação.
Em oposição, Marília Farinha, professora do Departamento de Pedagogia e Educação da Universidade de Évora, considera que “o facto de um professor ir a esse tipo de programa não o descredibiliza”, apontando um certo “conservadorismo” na origem das críticas. “O professor continua a ser um cidadão e não há nada no seu estatuto que o impeça” de participar num formato do género. “Desde que assuma um comportamento responsável, não coloca nada em causa.” Além disso, a docente chama a atenção para o facto de este programa chegar a outros públicos, “como os avós”.
No mesmo sentido disserta Ana da Silva, com experiência de ensino no básico e secundário e durante muitos anos ligada à formação de professores, considerando “um exagero estas preocupações”, que não existiriam com mais confiança por parte de toda a classe. “Não só não vejo essas linhas vermelhas”, como se está “a desviar as atenções para o menos importante”. “O que é importante é perceber que a escola, mesmo enquanto espaço, tem de evoluir”, diz, esperando que o actual contexto sirva para renovar as ferramentas e os locais de ensino. “Se formos a um museu, percebe-se que pouco mudou numa sala de aula desde o século XIX”, constata.
O sucesso do brincar
“Com os mais pequenos, primeiro temos de chegar ao coração e só depois conseguimos lá deixar alguma coisa”, diz Helena Ramos, uma das professoras que marcou presença no programa da TVI e que, mais tarde, se confessou incomodada. Mas não tanto pelo conceito de entretenimento associado ao ensino, explica ao PÚBLICO. Afinal, insiste, “é fundamental nestas faixas etárias saber brincar”.
No entanto, a docente admite que “não estava preparada para esta exposição”, confessando sentir haver muita gente “à espera que dê um passo em falso” — uma visão partilhada com Alexandre Henriques, que confessa o seu receio do que se “pode perder com o mediatismo”.
Sobre a ida à TVI, Helena Ramos sintetiza “não ter ajudado a dignificar o nosso trabalho” e desabafa ter-lhe desagradado sobretudo a postura de quem “fez papel de alunos parvinhos”: o apresentador Manuel Luís Goucha e os cronistas Ana Arrebentinha e Flávio Furtado. Afinal, aquilo que as docentes protagonizaram em frente às câmaras de um programa de entretenimento é exactamente o mesmo que fazem nas emissões do #EstudoemCasa ou numa sala de aula — a diferença é que nestes espaços “é normal”.
Por tudo isto, não se sente entusiasmada com todo “o sururu por causa do rap” — “não acho este empolgamento benéfico”, aproveitando para esclarecer que as suas presenças nestes programas não foram pagas. Também Alexandre Henriques, cujo blogue costuma reflectir temas relacionados com a educação, não considera esta exposição “muito benéfica”, apontado a mesma como um “tiro no pé” numa actuação, no âmbito do processo do #EstudoemCasa, globalmente boa.
A direcção do programa Você na Tv! esclarece, em nota enviada ao PÚBLICO, que as professoras foram informadas, “a priori, tanto por telefone como presencialmente, sobre a dinâmica” em que estariam inseridas no programa. “O programa Você na Tv! tem como objectivo diário entreter o público, sem qualquer intenção de gozar ou ridicularizar os convidados. Foi isso mesmo que aconteceu com as professoras do Estudo Em Casa, à semelhança do que já aconteceu noutros programas de entretenimento em que participaram. Estas ou outros professores.”