De repente, o anormal tornou-se normal, o medo tornou-se um hábito e como todos os hábitos tornou-se normal. Já ninguém tem medo de ter medo do vírus que entrou nas nossas vidas e que as limitou.
O desconfinamento trouxe alguma normalidade às vidas de milhões de pessoas que sentiram o medo do desconhecido, da doença, da incerteza de poderem levar uma vida considerada normal. Mas o problema não era o confinamento é o retorno ao anormal.
Assistiram-se a homenagens à porta dos hospitais, houve horas marcadas para se bater palmas à varanda e às janelas, houve doações simpáticas de bolos e pastéis, material de protecção, cremes para as mãos e para a cara, bebidas e águas, mas já tudo passou. Tenta-se voltar à normalidade de máscara colada à cara e já se esqueceu quem esteve na linha da frente a dar o seu melhor, a pôr a sua vida em risco pelo maior bem que todos possuímos, a nossa vida. Não tardará muito a que os heróis se tornem bestas novamente.
Bastou uma pequena esperança de (a)normalidade para que tudo o resto fosse esquecido. A normalidade com que já se fala e conversa sobre um vírus que, por força de nos ser enfiado pelos olhos a dentro a todas as horas do dia, tornou uma vulgaridade a luta dos profissionais de saúde para o travar na tentativa de nos levar desta vida. Não tardará a ser dito que não fizeram mais do que a sua obrigação, que é para isso que são pagos e escolheram a profissão.
A sociedade anseia por voltar ao que era, ao que tinha, ao que era possível fazer e dizer antes de ter medo de morrer de um momento para o outro com uma doença sem tratamento conhecido. Por isso, quem os trata já não está nas primeiras páginas dos jornais, nem abre telejornais. Não tardará a que se noticie mais uma agressão a um médico ou a um enfermeiro num desses hospitais.
Se até agora ninguém se importou, porque se importaria, neste momento, com as condições de trabalho dos enfermeiros que há 20 anos não têm carreira, que viram a sua profissão ser retirada da lista de profissões de desgaste rápido, que não vêem as suas especialidades reconhecidas financeiramente. Porque se importaria com uma classe que se fartou de promessas e veio para a rua ser criticada pelos decisores, pelos doentes que trataram, pelos que agora entregaram as suas vidas nas suas mãos, pelos que choraram a eles abraçados, por toda uma sociedade que os chamou de “bestas” só por pedirem o que lhes é de direito.
Não tardará a que digam que ganham demais para aquilo que fazem. Não tardará a que a anormalidade se torne normal. Não tardará que a imagem que se teve dos enfermeiros e outros técnicos de saúde durante o período de pandemia se desvaneça e se volte a olhar para eles como mais uns que são como tantos outros.
O povo diz, na sua grande sabedoria, que só se reza a Santa Bárbara quando troveja. O povo tem razão, porque passada a tormenta já ninguém bate palmas aos enfermeiros, já ninguém quer saber daqueles que o que tinham e o que não tinham, que se expuseram à doença de uma forma altruísta e com espírito de missão.
Oxalá não seja necessário bater novamente palmas aos enfermeiros pela mesma razão. Bater-lhes palmas da próxima vez que os virmos na rua a exigir melhores condições de trabalho e de vida para nos valerem numa aflição, será melhor que lhes chamar de “bestas”, pois então!
Apoiar a luta de um trabalhador que exige melhores condições de vida e de trabalho é o mesmo que apoiar um melhor serviço por ele prestado. No caso dos enfermeiros levamos uma grande lição. De “bestas” passaram a “bestiais” esperemos que o que o futuro nos reserva não nos faça mudar, mais uma vez, de opinião.