O coronavírus e o Antropoceno
A pandemia sugere que, em situações de catástrofe, vence a hegemonia tecnocrática assente em processos de decisão top-down, visando a manutenção de infra-estruturas, de serviços essenciais e da vida humana.
O Antropoceno é a época geológica proposta para indicar a indissociabilidade entre a acção das sociedades humanas (como emissões de CO2) e fenómenos como eventos meteorológicos extremos, alterações climáticas e aquecimento global.
Catarina Barbosa Reis, num artigo publicado no PÚBLICO, lembra que o Antropoceno nos obriga a redefinir o papel do humano e a “questionar as estruturas tradicionais de sujeito e objecto”, diluindo as fronteiras entre humano e não-humano e levando à proliferação de híbridos que misturam registos ontológicos como a economia, tecnologia, atmosfera e subjectividade.
A covid-19 revela com especial nitidez e maximiza as tensões do Antropoceno. Em primeiro lugar, a origem zoonótica do vírus indica que a comodificação de espécies não-humanas (e da natureza em geral) tem consequências devastadoras para os humanos. Em segundo lugar, os efeitos disruptivos do vírus sugerem que as relações sociais dependem de um equilíbrio potencialmente afectado por alterações moleculares (e também atmosféricas). Em terceiro lugar, algumas medidas para conter a propagação do vírus incluem soluções tecnológicas que reforçam uma maior vigilância sobre a população, à imagem de técnicas de geoengenharia, propostas para “conter” os efeitos das alterações climáticas. Em quarto lugar, a pandemia tem gerado uma guerra de informação, assistindo-se à proliferação de notícias falsas – por vezes de teor sinófobo – que, à imagem do negacionismo climático, rejeitam as evidências científicas. Finalmente, as mudanças sociopolíticas para fazer face à pandemia – Estado de excepção e isolamento social – indicam que as liberdades dadas por garantidas podem ser suspensas perante eventos extremos – um vírus ou o colapso climático.
A crise pandémica tem sido lida enquanto oportunidade para reconfigurar os sistemas políticos contemporâneos. Na leitura de Slavoj Zizek, trata-se de saber “que forma social substituirá a ordem liberal-capitalista do Novo Mundo” (PÚBLICO 12/04/2020). Arundhati Roy considera a pandemia um portal para imaginar esse mundo diferente, dando eco às reflexões de Donna Haraway sobre o Antropoceno, que considera ser uma fronteira entre distintas épocas geológicas e ontologias. No entanto, o coronavírus tem reduzido a margem de actuação política, já que a esmagadora maioria dos países recorreu a medidas padronizadas: quarentena, limitação da circulação de bens e pessoas, etc. A pandemia reforça o que alguns autores designam como o processo de dupla delegação: a delegação da agência individual no Estado para manter as infra-estruturas e serviços básicos em funcionamento e a delegação de decisões técnico-científicas em autoridades médicas e científicas.
A pandemia sugere que, em situações de catástrofe, vence a hegemonia tecnocrática assente em processos de decisão top-down, visando a manutenção de infra-estruturas, de serviços essenciais e da vida humana. A margem de manobra para influenciar os mecanismos de dupla delegação é reduzida, e essa é uma lição que podemos transpor para a crise climática, exigindo-se alternativas comunitárias e populares robustas para lidar com os riscos, evitando que os sistemas sociopolíticos recorram a técnicas cada vez mais violentas para se perpetuarem. Da mesma forma que precisamos de novas ontologias para fazer face ao Antropoceno, a crise pandémica exige a reinvenção de práticas, alternativas e novas solidariedades muito para além dos imaginários da modernidade.