E os públicos da Cultura? Da fruição presencial e do lugar do digital

Uma vitalidade crescente do mundo digital desembocará na criação de novos públicos para a Cultura dotados de perfis, gostos e motivações heterodoxos que, pela sua matriz, poderão vir até a reconfigurar o próprio conceito comum de “espectador”?

Se fizéssemos um exercício de estatística lexical relativamente ao muito que se tem escrito nos últimos tempos em torno da pandemia, os prefixos “in” ou “im” seriam decerto um denominador comum a muitas das palavras mais usadas, sempre no sentido de privação de algo que (real ou ilusoriamente) imaginávamos possuir num tempo pretérito e que agora nos foi repentinamente subtraído: incerteza, indefinição, imprevisibilidade, impotência, incompletude.

Por muito que atentemos sobre as implicações da covid-19, inclusive na área da Cultura e das Artes, é quase inevitável cair num limbo pantanoso e difuso onde as posições absolutas e as previsões mais “lógicas” e sustentadas (das mais optimistas às mais cépticas) podem rapidamente desmoronar-se como um simples castelo de cartas. O filósofo José Gil apontou-o inúmeras vezes: “Tudo o que resulta das velhas verdades falhou.” Neste tempo de suspensão interrogativa, feito de sentimentos duais e contraditórios, a repercussão deste novo coronavírus na vida colectiva afigura-se um processo complexo, dinâmico e sujeito a múltiplas variáveis. Como se este admirável mundo novo nos remetesse para o plano do silêncio, da prudência, do temor, da expectativa. E o esboço do futuro se afigurasse um prodigioso exercício de imaginação.

No sector artístico sabemos que criadores/intérpretes, estruturas e contextos de apresentação se têm confinado a uma dimensão quase exclusivamente digital como estratégia-instrumento de superação do trauma presencial e de manutenção de uma dinâmica relacional com os públicos. O presente e agora superlativizado empoderamento do online trouxe consigo uma maior sensibilização dos artistas para a relevância de uma eficaz, capacitada e actualizada promoção do seu trabalho ao nível do marketing digital. Mas fomentou também uma maior abertura e esforço por parte das instituições culturais em prol de uma integração mais ambiciosa nesse desafiante mundo virtual. A importância de adoptar o registo/captação audiovisual dos processos criativos (reuniões de brainstorming, pesquisa, residências, ensaios) e, sobretudo, dos espectáculos ao vivo como uma prática regular (e não pontual), dotada de qualidade técnica, com a consequente construção e preservação de um arquivo performativo, são igualmente “sirenes” positivas destes tempos na esfera cultural. Acresce ainda a discussão em torno do acesso gratuito à Arte e do binómio sustentabilidade versus banalização/desvalorização do acto criativo, sem esquecer o relançamento do já antigo debate sobre a profissionalização do sector artístico (a pedra de toque há tanto adiada) e os direitos de autor.

Ainda sobre o tópico do arquivo, é de sublinhar a sua centralidade na salvaguarda da memória documental do palco e do histórico artístico dos criadores e intérpretes, tantas vezes descurados. A captação integral das performances públicas, sendo instituída como procedimento sistemático — algo que continua a não acontecer em muitos dos espectáculos realizados nos equipamentos culturais de pequena-média dimensão a nível nacional —, tem um triplo efeito de inegável relevo: permite às instituições disporem de um repositório audiovisual actualizado e consistente que pode ter inúmeras funcionalidades e aplicações (não apenas promocionais); possibilita aos artistas o acesso fiável e permanente a um instrumento precioso quer de registo da memória de cada sala/apresentação, quer de auto-análise crítica dos seus processos de trabalho e do consequente impacto das obras junto do público, quer ainda de difusão mais eficiente dos repertórios criativos; e disponibiliza à crítica de arte e à investigação académica, em vários sub-domínios das ciências humanas e sociais, uma ferramenta extremamente útil e fecunda de pesquisa, estudo e produção de conhecimento.

Esta ininterrupta vivência no/do écran tem gerado e conferido ainda maior visibilidade à partilha espontânea, à criatividade do cidadão anónimo, a uma arte “informal” que faz da clausura doméstica o seu lugar privilegiado de expressão (e, não poucas vezes, de inspiração), ao incremento de práticas colaborativas no seio do próprio universo artístico, a experiências imaginativas que reinventam a rotina comum dos dias, bem como a “outras camadas de participação” não dependentes do poder institucional (como refere o programador António Pinto Ribeiro).

Não menos relevante nesta fase é a efectiva possibilidade de o grande público ter uma maior disponibilidade para explorar online, em profundidade, um extenso e ecléctico manancial de história cultural e artística, plurissecular, ainda por conhecer. A este propósito, a realizadora Joana Linda enfatizava há tempos, numa entrevista à revista Gerador, a assustadora ignorância que grassa nas novas gerações sobre tudo o que veio antes delas, fruto da cultura do novo, da obsessão dos likes e shares, e do culto da instantaneidade e da velocidade, que não deixam de ser também “pontes de areia” (como frisa Joana), sinónimo da ausência de alicerces, de balizas, de referências de fundo, de uma visão diacrónica de conjunto.

Se têm sido múltiplas e pertinentes as reflexões sobre as consequências desta conjuntura no meio artístico e nas salas de espectáculo, coloco agora a tónica nos públicos e na dimensão da recepção. Quatro factores mais imediatos influenciarão, na prática, a fruição de conteúdos culturais nos próximos tempos, independentemente dos moldes de retoma da “normalidade”: as limitações — substanciais numa fase inicial como mecanismo profiláctico — que forem decretadas pelas autoridades de Saúde no que concerne quer à lotação máxima autorizada para espaços com lugares marcados mas também para contextos outdoor, quer às demais regras e modalidades de acesso restrito a definir para eventos culturais em modo presencial; o consequente grau de adaptabilidade do público às mesmas (aspecto menos falado), visto que essas condicionantes não deixarão de interferir com a própria dinâmica da experiência artística in situ, tanto no plano da fruição individual (sensorial e emocional) no espaço da sala como na vivência partilhada do espectador com o colectivo envolvente, como ainda na interacção entre público/plateia e artista/palco; o efeito psicológico de retracção que a pandemia provoca no imaginário social atendendo ao justificado receio de contágio via proximidade física ou maior concentração humana, sobretudo no que toca a grupos de risco, aliado a uma memória envolta em medo e insegurança que nunca é facilmente dissipável (não obstante a vontade acumulada que muitos também sentirão de mergulhar novamente no cúmplice ritual colectivo face-a-face); e a disponibilidade financeira do público, ao longo desse movimento de recuperação que se prevê economicamente exigente, para um bem considerado tradicionalmente não essencial.

Ao mesmo tempo, existem dois fenómenos paralelos, e de sentido contrário, que nesta fase se revestem de particular acuidade quando pensamos na recepção cultural. Um deles, porventura mais óbvio, é a natural tendência, após o fim do confinamento, para uma revalorização e exaltação da dimensão presencial, não só devido ao longo período de abstinência mas também a um provável cansaço e saturação perante o excesso digital e a experiência solitária e distanciada — aqui numa espécie de mecanismo (in)consciente de contrapeso e “auto-regulação” social que, face à hegemonia temporária do online, vem sublinhar a singularidade da ideia de assembleia humana, do ritual da partilha colectiva e plural, do contacto mais humanizado com a Arte.

Convoco também uma pertinente reflexão desencadeada pelo programador Rui Torrinha numa conversa informal há dias ao telefone. Numa perspectiva sociológica mais ampla, a adesão física do público às manifestações artísticas — devido não só à complexidade das actuais limitações existentes mas também a tendências “silenciosas” que já remontam a um período pré-covid — poderá funcionar ainda, de modo indirecto, como teste e também barómetro da disponibilidade ou fechamento do indivíduo contemporâneo para a própria relação com o outro, para a actividade, para a atenção profunda e contemplativa, para um olhar demorado e lento (e, assim, para objectos artísticos que vão para lá do mero entretenimento), para garantir uma dialéctica do ser com o mundo. No fundo - e isso não é novo -, trata-se do reflexo de um processo de “excesso de positividade” e de possibilidade (como advoga Byung-Chul Han), de adoecimento social e de patologia neuronal em que estão em causa o(s limites do) esgotamento, o tédio, a tensão e fadiga extremas, derivados de uma atmosfera de hiper-estimulação e de torrente informacional. Aliás, já Peter Handke, ensaísta austríaco, preconizava essa tese em 1989 quando publicou o Ensaio sobre o cansaço, elegendo este como um estado fundamental que enforma as ligações humanas e as relações dos indivíduos consigo mesmos nesta era contemporânea.

Em rigor, de diversos pontos de vista esta epidemia não trouxe propriamente nada de inovador. São vários os fluxos-correntes que já pulsavam activamente antes deste coronavírus. A diferença é que em poucos meses, numa temporalidade concentrada, assistimos a uma hiper-aceleração e ampliação das mutações já em curso nas últimas décadas, as quais se manifestam agora com um novo grau de evidência, extensão e mediatização. No universo da Cultura e da Arte, este “futuro antecipado” trará decerto — como, de resto, já está a fazê-lo — permanências, incrementos e mudanças. Face a uma conjuntura de duração imprevisível, duas ideias parecem-me absolutamente essenciais, as quais, na verdade, são extensíveis a várias etapas/áreas do circuito artístico (criação-difusão-mediação-fruição): uma inevitável convivência entre, de um lado, um paradigma assente no valor do humano e na dimensão presencial e, do outro, o universo das ferramentas digitais, numa perspectiva complementar, criativa, coerente e eficaz, e não de redutora lógica binária ou de exclusão/anulação irrealista de um dos modelos; e um movimento paralelo de resistência a uma indesejável ditadura disruptiva do online que, sem descartar as potencialidades da tecnologia, valoriza e privilegia como prioridade a substância e urgência da experiência física. Como nos lembra o intemporal filme Metrópolis, de Fritz Lang, já em 1927, o mediador entre a mente e as mãos deve ser o coração (e não a máquina).

A problemática virtual já faz claramente parte da equação e constitui, sem dúvida, uma das questões mais sensíveis, complexas e debatidas no seio da massa crítica do sector cultural. Sabemos também que a arte digital (ou, mais amplamente, a agora chamada new media art), que usa a tecnologia e as interfaces electrónicas como parte integrante do seu processo de criação e/ou apresentação pública, não constitui novidade. Surgido, de forma mais vincada, nos anos 60/70 do século passado, esse movimento vanguardista abriu desde logo um vasto leque de possibilidades à criatividade, interacção e construção de subjectividades na contemporaneidade. Quanto ao universo das chamadas “artes do palco”, ao longo de várias décadas a presença do digital esteve ligada sobretudo a linguagens mais específicas, alternativas e minoritárias (e não no âmbito do grande público), como a performance, a instalação interactiva, a vídeo-dança, a música electrónica, as abordagens sonoras experimentais e a música computacional. Só em tempos mais recentes, com o maior incremento da facilidade de acesso à Internet, esse universo criativo conheceu uma visível democratização, adquirindo uma expressão claramente mais abrangente e prolixa. Também por via de uma multidisciplinaridade crescente do fenómeno artístico, essa dimensão da desmaterialização e da virtualidade vem dialogando cada vez mais com zonas tradicionalmente mais “incólumes” das artes performativas. Esse facto, exacerbado pela actual conjuntura, tem vindo a provocar toda uma reflexão em torno das múltiplas implicações da Internet nos pressupostos éticos, (auto-)percepções, conceitos estético-ideológicos, conteúdos artísticos, dispositivos formais, processos de trabalho, modos de recepção e teia de relações humanas urdidas na/pela Arte.

Actualmente, e com a maior generalização da aplicabilidade digital a quase todos os quadrantes da vida em sociedade, parece-nos óbvio pensar que não regressaremos de igual forma nem iremos agir da mesma maneira perante o outro assim que as salas de espectáculo reabrirem. E isso não terá de ser necessariamente negativo nem um sinónimo de desvirtuamento da missão das instituições, mas sim de adaptação/reinvenção e até de orientação para o futuro sem perder a matriz primacial que consiste na interacção humana. Se o consenso maior dos nossos dias parece ser o de que vivemos tempos de dúvida e mistério, também não será menos verdade que estamos diante de uma janela de oportunidade e de um momento claramente desafiante que questiona algumas das nossas concepções e práticas mais enraizadas e “intocáveis” (e ao mesmo tempo também consolida outras convicções), o que nos provoca sempre medo, fragilidade, desconforto, insegurança. Encarando aqui o copo meio cheio, essa multiplicidade de perguntas e inquietações que assalta hoje a todo o momento a nossa vida mental também acabará por nos solicitar novas sínteses e renovados equilíbrios a que não est(áv)amos habituados (“a tempestade [não] é aquilo a que chamamos progresso”, como defendia Walter Benjamin?), mas que estão aí para nos (des)construir e, sim, entusiasmar.

O mundo virtual coloca, a meu ver, cinco desafios ao campo das artes performativas, os quais já estão a manifestar-se a diversos níveis com uma expressividade crescente, não só entre o meio artístico como também junto das próprias instituições culturais. Um deles tem a ver — já o frisámos anteriormente — com a comunicação e difusão digitais das ofertas culturais e criações artísticas mas também da sua vertente de arquivo de espectáculos, com o online a consolidar-se como um recurso de inegável atractividade para a sensibilização e contacto directo com o público pelo seu grau de inovação, alcance e eficácia. O recurso ao mundo online pode ainda contribuir para ampliar a potência de camadas mais “invisíveis” e autorais/idiossincráticas da própria arquitectura programática, bem como para criar ou afinar mecanismos — essenciais nos dias que correm — de difusão selectiva de informação (DSI), visando captar segmentos e perfis mais específicos e delimitados de público-alvo.

Outro aspecto prende-se com a componente da mediação, área muitas vezes olvidada mas hoje de extrema importância para uma intervenção cultural regular mais apelativa e transformadora dos seus destinatários, nomeadamente, mas não só, em relação a conteúdos artísticos considerados mais herméticos, incomuns e exigentes, ou pensando em determinados públicos-chave (comunidade escolar, adolescentes, seniores, minorias sociais, etc.). A panóplia de soluções digitais actualmente existente apresenta uma utilidade pedagógica e uma dimensão inclusiva inegáveis, aportando efectivo valor à experiência cultural/artística, através de instrumentos de mediação diversificados como visitas virtuais, podcasts, projectos online (pré e/ou pós-espectáculo) em torno de determinado criador, obra, intérprete ou temática, boletins ou newsletters, conferências informais, vídeo-chamadas, propostas audiovisuais com recurso a realidade virtual (RV) ou aumentada (RA), formatos comentados em live streaming ou simples publicações no Facebook e Instagram que solicitem uma interacção mais didáctica com o público, sem que isso substitua a fruição física, mas fomentando mecanismos de provocação e de descoberta autónoma/orientada da Arte.

Também ao nível da criação propriamente dita (um terceiro desafio), a esfera digital pode ser um instrumento inspirador para artistas mas também para programadores, no sentido da exploração de intersecções criativas, disruptivas e até inusitadas entre os planos/abordagens/percepções orgânico/real e tecnológico/virtual, interrogando, a partir de um lugar de provocação tão familiar ao universo artístico, canais de ligação, fronteiras, limbos e/ou (des)continuidades entre as duas realidades. Paralelamente, a idealização de objectos artísticos pensados, desde o momento da concepção, para uma ulterior fruição exclusivamente (ou não?) online pode constituir outro caminho igualmente estimulante nestes tempos que convidam à experimentação e à ousadia.

Além disso e — pensando também na vertente da recepção —, se uma abordagem focada no digital pode funcionar, num momento inicial, como ante-câmara do contacto posterior com os conteúdos artísticos através da singular e insubstituível experiência in situ, por outro lado, a fase pós-apresentação pública em modo presencial de determinadas criações — timing nem sempre potenciado da forma mais eficaz e superlativa pelos equipamentos que as difundem — pode também ser alimentada por estratégias digitais de prolongamento do lastro e dos múltiplos “estilhaços” desse espectáculo/labor artístico numa óptica de obra aberta. Em suma, o online tanto pode servir de ponto de partida como de etapa “final” face ao paradigma presencial e vice-versa, num jogo dinâmico e original de combinações e interpenetrações.

Um quarto desafio: o tópico, inevitável, da sustentabilidade das instituições. Numa sociedade global, a esfera virtual demonstra uma preponderância económica a que não poderemos fugir. A compreensão atempada e lúcida do alcance da pegada digital pode assumir contornos decisivos no que toca à sobrevivência e sustentação — e até legitimação junto do poder — dos equipamentos culturais, ainda mais numa área tradicionalmente muito afectada por períodos cíclicos de retraimento, contenção e sub-financiamento propiciados por factores económicos e/ou políticos. Sem querer entrar a fundo na ampla temática do serviço público por parte do Estado e do acesso gratuito à Cultura, considero que se é um facto que o sector cultural não sobrevive sem público, não será menos verdade que o mesmo não perdurará se não gerar algum volume de receita. Isto de modo a que esse income financeiro, mais alavancado pelas amplas potencialidades do digital ao nível do leque de serviços disponíveis, também possa ser mais um argumento (entre outros a meu ver tão ou mais relevantes) que dá cobertura à sua intervenção.

Por último, como derradeiro desafio, a recepção artística, ou seja, os públicos — retornamos a esta temática como fio de Ariadne desta reflexão crítica. É neste ponto que a discussão em torno do digital adquire uma dimensão mais intricada e multifacetada. Mas começo por uma evidência comum: é fundamental educar, manter e fidelizar os públicos já aderentes, mas não é menos vital cativar novos públicos para a Cultura e as Artes. E aqui — já o salientei noutras passagens — as potencialidades do online são imensas e variadas, mormente aos níveis da inclusão/acessibilidade e interacção em tempo real, desde que utilizadas com critério e bom senso. Torna-se, assim, essencial pensar nos públicos para quem se concebe conteúdos digitais, adoptando instrumentos eficazes de monitorização do alcance, utilização e adesão aos materiais disponibilizados na esfera virtual. Daí que esta conjuntura e a transição para uma nova “normalidade” sejam igualmente momentos preciosos para estudar os públicos — são ainda poucos os trabalhos, de maior fôlego e de cariz qualitativo, sobre a recepção em Portugal no domínio das artes do espectáculo, sendo o território digital, neste particular, uma realidade por explorar - e para, no caso das instituições culturais, realizar experiências, testar modelos, arriscar na incerteza, errar melhor.

Noutra perspectiva, esta nova realidade vem ainda questionar e desconstruir dois “chips” muito enraizados (mesmo que por vezes pouco confessados?) no seio do tecido cultural ao nível institucional: a preocupação com a meta estatística das lotações esgotadas, ostentadas com legítimo orgulho por todos nós e aproveitadas, e bem, do ponto de vista comunicacional como factor de valorização, promoção e diferenciação dentro do (também competitivo) universo das estruturas culturais; e a ideia, não forçosamente consciente, de que a fidelização de público pela via presencial (aquele que frequenta, assiduamente ou não, as salas de espectáculo) será simbolicamente, porventura, mais relevante e valorizável do que a captação de novos seguidores que fruem a Cultura (apenas ou também) através das plataformas digitais.

Se os números não têm nem devem constituir forçosamente a evidência mais importante nem a programação uma refém absoluta desse indicador, não é menos verdade, como sabemos, que é irrealista e imprudente descartar a sua significação e impacto, para o bem e para o mal, na implementação e nas percepções pública e política das dinâmicas culturais e artísticas. Ainda assim, creio que uma das consequências da covid-19 vai ser precisamente uma revalorização da pequena escala (por contraponto à imagem da massa indiferenciada), do less is more, do reduto intimista mais confortante, do micro-contexto, de uma relação ainda mais personalizada e afectiva dos espaços/contextos culturais com os seus utilizadores. Considero ainda que uma expressiva estatística de adesão digital a um determinado espectáculo não é menos “abonatória” do que uma significativa fruição presencial do mesmo, ainda que deva ser um dos maiores desafios das entidades culturais na actualidade o de criar condições para provocar desejadas “deslocações” dinâmicas de público, neste caso em que adeptos do digital possam também ser atraídos para a experiência física (o que, de resto, não é de todo linear).

Posto isto, em que moldes o paradigma tradicional de recepção das artes performativas, centrado na experiência presencial, poderá posicionar-se neste período pandémico e de transição preventiva, de duração incerta? Apesar das muitas dúvidas e especulações, algumas certezas ainda vão ordenando o nosso mundo interior. Sabemos, desde logo, que a experiência física, in loco, de um espectáculo, incluindo o impacto do dispositivo contextual que o enquadra e delimita, se reveste de um grau de “pureza” e de imersividade, interacção, sociabilidade (comunitária), estímulo sinestésico, empatia intelectual, descodificação polissémica e transformação do espectador que a fruição digital continua a desconhecer e lhe é estranho. Quando se colocam na balança, numa espécie de (tácito) cruzamento crítico, todos esses ingredientes, a recepção virtual revela-se, quase invariavelmente, o elo mais fraco, numa percepção muito clara e relativamente consensual de que a singularidade conceptual da criação, a qualidade patente na sua transposição para cena e o punch emocional da sua mensagem (três dos “requisitos” mais decisivos na adesão a uma proposta artística) saem visivelmente potenciados e ampliados na transmissão presencial.

Empatizo profundamente com esta perspectiva não só enquanto espectador mas como programador de artes performativas e também músico, mas esta identificação — que é, no fundo, um acto de resistência (volto a esta ideia-chave) que é vital preservar e alimentar em prol do valor do humano, de um paradigma centrado na ritualística do corpo e dos sentidos e na transcendência singular que a experiência-reunião colectiva convoca e provoca — não poderá, ao mesmo tempo, ser sinónimo de uma negação dos novos tempos. Recordo Milan Kundera, que escreveu que “a vida é a perpétua violação da ordem” porque o desejo da ordem é, ao mesmo tempo, um desejo de morte. 

Conscientes de que a recepção presencial estará visivelmente condicionada, artistas, técnicos e estruturas culturais terão esse desafio maior de, sem descurar as orientações preventivas, descobrir novas fórmulas de alimentar, pela imaginação e criatividade, essa relação primordial, olhos nos olhos, com o público. As acrescidas regras sanitárias e de segurança vão influenciar inevitavelmente o tal grau de “pureza” da experiência artística, assim como todo o trabalho criativo e técnico/logístico que está a acontecer em palco e fora dele. Não é difícil imaginar uma certa atmosfera “fantasmagórica” a pairar sobre as salas, pontuadas aqui e ali por ilhas humanas hiper-protegidas, cuja tensão acalentamos, esperançosamente, poder ser “desarmada” pela catarse provocada pelo espectáculo. Mas é essencial também que as instituições possam atenuar o mais possível o efeito disfórico destas condicionantes, trabalhando mais aturadamente, em malha fina, a dimensão sensível do acolhimento e envolvimento presenciais do público, fazendo-o “esquecer” a normativa realidade não estritamente artística.

Perante a incerteza do quadro geral e a possibilidade, para já nada descabida, de assistirmos a um processo marcado não apenas pela lentidão e intermitência mas também por avanços e recuos, julgo pertinente que durante esta fase de transição as instituições/equipamentos culturais possam propor uma estratégia “mista” de fruição que, privilegiando de forma clara a recepção presencial como prática regular e dominante (e, em última análise, insubstituível), recorra paralelamente à disponibilização online, em tempo real e com pagamento, de alguns conteúdos artísticos previamente seleccionados. Contudo — indo ao encontro de duas ideias-chave que já apontei noutro passo —, essa possibilidade digital em live streaming terá necessariamente de ser gerida com parcimónia, critério e sensatez pelas entidades públicas, aplicando-se apenas a um número circunscrito e minoritário de espectáculos. Sabendo de antemão que se tratam de contextos diferenciados com especificidades próprias e que o modo online apresenta, per se, limitações “naturais”, neste momento excepcional a exequibilidade da experiência presencial não deverá, a meu ver, excluir em casos pontuais a sua “versão” digital.

Esta estratégia programática de dupla opção fomenta uma maior equidade social entre os poucos espectadores que poderão assistir in loco a espectáculos (pelas razões óbvias já elencadas) e os que privilegiarão, por prevenção, preferência ou necessidade, o universo online, além de traduzir uma resposta mais inclusiva e abrangente enquanto serviço público — não obstante sabermos que existem “fossos digitais” entre classes, grupos etários e gerações. Em tempos (que não são novos) de desigualdade e agora também de contingência, criar condições para que mais cidadãos possam ter um acesso efectivo à informação, neste caso à oferta cultural, é também dar-lhes uma promessa de futuro, alimentando um sentimento de atenção solidária e de esperança colectiva.

Enfatizo ainda a ideia de que a transmissão em directo, via Internet, de criações artísticas que estão a ser apresentadas/fruídas numa sala de espectáculos também pode constituir uma oportunidade preciosa para áreas como a Sociologia da Cultura e a Neurociência Cognitiva da Arte desenvolverem estudos académicos mais aprofundados - tão prementes e úteis também para quem trabalha em programação de artes performativas e na análise dos públicos - sobre a relação do indivíduo com o objecto artístico, incidindo sobre as especificidades dos estados e processos perceptivos identificáveis nas recepções presencial e virtual, e analisando os dois paradigmas numa perspectiva comparativista. Recorde-se que o “público” é um dos conceitos mais difusos pela diversidade dos seus usos e descrições, e que a maior democratização da Arte não veio facilitar a sua definição, hoje distante da ideia de um grupo de pessoas com interesses comuns por oposição à “massa”. Além disso, sempre que surgem “novos media”, como os electrónicos (a Internet), aparecem também novos públicos e aqui a mediatização cultural trouxe consigo um incremento da inteligibilidade da Arte bem como um aumento dos potenciais públicos da Cultura.

A difusão digital de alguns espectáculos ao vivo tem várias implicações, umas de cariz prático e outras de alcance mais simbólico. Em primeiro lugar, exige um reajustamento dos orçamentos alocados à programação por parte das instituições, acautelando: as despesas com direitos de imagem derivados dos acordos prévios com os artistas que se pretende abarcar; um capacitado investimento na qualidade audiovisual da transmissão dos conteúdos performativos, de modo a conferir mais-valia a essa opção e, assim, a incentivar e legitimar a cobrança da mesma; e a adopção de uma plataforma eficaz, com parâmetros e condições específicos, que permita o pagamento da recepção virtual. Este modus operandi poderá inclusive questionar, a médio-longo prazo, várias entidades culturais, nomeadamente as situadas fora dos grandes centros, sobre a constituição e perfil das suas equipas de trabalho e sobre a necessidade de nelas integrar elementos especializados no campo do registo e edição vídeo. Sublinho aqui a dimensão de criatividade (de uma função “autoral” partilhada com os artistas) que esses profissionais da área audiovisual podem aportar tanto ao processo dinâmico de captação de imagens ao vivo para o online como ainda à manipulação posterior desse material performativo para fins diversos, como reportagens, documentários, teasers/trailers, videoclips, transmissões em diferido, etc.

A questão do pagamento dos espectáculos assume aqui uma relevância central. Além de a população portuguesa em geral não ter o hábito cultural enraizado de pagar para ver conteúdos online ligados estritamente às artes do palco (não obstante 3,8 milhões de pessoas já fazerem compras via digital), toda esta fase em que houve uma proliferação massiva de apresentações ao vivo gratuitas terá decerto as suas consequências nos hábitos sociais, criando uma previsível retracção/acomodação de não poucos utilizadores quando confrontados com a impossibilidade de aceder sem custos a determinada oferta performativa emanada digitalmente de uma instituição cultural. Por outro lado, esse recurso à Internet também estará dependente do grau de familiaridade dos públicos com as modalidades de pagamento mais usuais (Paypal, MB Way, Mbnet, cartão de crédito, etc.), sabendo-se, por exemplo, que 89% dos utilizadores de compras online em Portugal tem entre 16 e 44 anos.

A meu ver, as transmissões de espectáculos na Internet a partir de teatros ou outros espaços culturais devem ser obrigatoriamente pagas, evitando-se a multiplicação de práticas de acesso gratuito que sejam contraproducentes quer em relação à desejada ida dos públicos às salas quer à implementação pontual de formatos online pagos. A definição de um preço justifica-se também por uma questão de alguma equidade e coerência relativamente a quem compra bilhete para a experiência presencial, como ainda pela pertinente mensagem simbólica que os agentes culturais transmitem à opinião pública com essa imperatividade material, bem como por alguma receita de bilheteira virtual (com uma expressão variável) que possa daí advir para as instituições. Se parece relativamente pacífica a ideia de que um público mais cultivado, que por norma já valoriza a fruição física, não irá alterar substancialmente o seu perfil num futuro próximo apesar da presente conjuntura, poderá haver segmentos mais “elásticos” desse universo que por razões diversas mudem/variem a sua postura perante algumas vantagens (mormente a acessibilidade económica) da hipótese digital. Daí que também se afigure útil que a experiência online não apresente um valor de acesso substancialmente menor ou irrisório face ao do ingresso presencial, sendo que um diferencial de 50% entre os dois valores poderia ser uma opção plausível e sensata. Ainda acerca do custo dos bilhetes na rentrée dos espaços culturais indoor a partir de Junho (ou de Setembro), parece-me pouco aconselhável que se introduzam reduções nas políticas de preços já praticadas habitualmente para a assistência em sala, isto como eventual estratagema para cativar mais público para a experiência in situ num período de maior contenção. Considero ainda que a difusão dos espectáculos na Internet deverá ser em tempo real e não em diferido, nem com disponibilização posterior on demand, pelo menos durante um período razoável de tempo após a sua ocorrência. Optando-se pelo directo, o público sentirá maior estímulo e envolvimento, até por “sugestão psicológica”, por saber-sentir que está a visionar um conteúdo que está efectivamente a acontecer naquele exacto momento.

Quanto aos critérios de selecção dos espectáculos a integrar essa programação online, aqui é crucial a aposta em conteúdos exclusivos, claramente diferenciadores e identitários da linha programática de cada espaço cultural, que sejam ao mesmo tempo muito apelativos para o chamado “grande público”. Refiro-me à apresentação de estreias absolutas, como sejam encomendas, e/ou de co-produções e outros projectos artísticos de grande fôlego, pois só este tipo de oferta poderá gerar uma motivação suficientemente forte que leve o público a pagar pela experiência virtual. E aqui reveste-se de inegável atractividade a apresentação de um package que inclua não só a transmissão do espectáculo em si, como a disponibilização pública, em primeira mão, de material complementar que provoque um maior efeito de imersão da audiência em todo o fenómeno performativo: visitas aos bastidores, acompanhamento dos preparativos, auscultação das expectativas, entrevistas com os artistas e programadores, comentários da crítica, reacções do público, etc.

Perante esta nova realidade de lotações muito limitadas em sala, para essas propostas que à partida teriam uma procura massiva haverá agora uma plêiade significativa de “presenciais excluídos” que pode activar a modalidade digital como “experiência de recurso” dependendo da qualidade e diferenciação da oferta apresentada (friso este ponto). Isto para além de uma audiência com hábitos digitais que não equacionaria assistir in situ a esses espectáculos, mas que pode vislumbrar também aqui uma oportunidade única e irrepetível de fazê-lo através da Internet. Por outro lado, pode revestir-se de particular utilidade a aposta online em algumas abordagens performativas mais alternativas e minoritárias, não inseridas no mainstream, que necessitam amiúde de um maior investimento em termos de mediação de públicos e de uma promoção mais exigente e direccionada junto de um target mais generalista.

Uma nota suplementar sobre as diferentes áreas artísticas, que nos levaria longe. Como é natural, a maior ou menor eficácia e atractividade do streaming de criações de Música, Dança ou Teatro dependerão também muito da qualidade técnica do registo audiovisual e da própria natureza intrínseca de cada espectáculo ao nível da sua linguagem formal, dinâmica em palco, diálogo criativo entre expressão e técnica, modulação e dispositivo cénico. Assim, se difundir online conteúdos musicais (concertos) constituirá uma prática mais comum (e, aliás, menos recente), à qual o público está habituado e em que a mensagem artística é, de alguma forma, mais “directa” e “desvelada”, transmitir virtualmente determinadas obras coreográficas ou teatrais pode levantar questões adicionais, isto mesmo sabendo que a fruição digital das artes cénicas já é, à partida, uma experiência de aproximação relativa/possível e não de imersão total. Nesta óptica, o caso do Teatro - esse templo onde tudo é verdade, até a mentira, como dizia Augusto Boal - parece ser aquele em que esta problemática, que não é de hoje, se coloca com maior acuidade. Será que a criação dramática deve ficar “imune” a esta abordagem de fruição não orgânica? Até que ponto a experiência do espectador através da Internet preserva e traduz a densidade, complexidade, depuramento e a dimensão de segredo/mistério, metáfora, poesia (que se faz humana), de espaço-tempo de liberdade e inquietação onde se podem discutir até às últimas consequências os problemas humanos, do universo teatral? Sobre uma arte milenar que faz o espectador descobrir que existem duas realidades, mas que a do palco é muito mais real (aprecio esta visão de Arthur Miller), poderão colocar-se assim múltiplas interrogações e leituras quando se fala da sua mediação tecnológica e “transposição” para um formato online.

O streaming das artes cénicas, inclusive de Teatro, não é, de resto, uma prática nova. Antes do advento desta pandemia existia já uma crescente constelação de grandes plataformas a disponibilizar online conteúdos de teatro, ópera e outros géneros musicais e dança a troco do pagamento de uma subscrição. A lógica do low cost, o enfoque na personalização e na liberdade de escolha, aliados à alta qualidade de som e imagem, são os pontos fortes deste tipo de oferta, num modelo híbrido que combina a transmissão de conteúdos gravados à disponibilização de espectáculos em directo. A pioneira, a Medici.tv., nascida em França em 2008 pela mão de Hervé Boissière, abriu caminho numa indústria então praticamente desconhecida e actualmente reúne 350 mil utilizadores de 186 países.

Então como poderão as instituições incorporar a dimensão digital sem com isso “poluir”, enfraquecer ou desvalorizar pragmática e simbolicamente a singularidade da vivência in situ da Arte? Ou o online na fruição dos espectáculos constituirá uma tendência temporária, que após o fim da pandemia se dissipará gradualmente? Ou, nesta mesma linha, será que as entidades culturais não têm, de todo, de recorrer também ao caminho virtual, continuando a privilegiar um único e exclusivo modo de apresentação da sua oferta, agora como dantes? De outro modo, dessa paralela opção digital não surtirá um crescente efeito de hibridização, potenciando franjas de espectadores que privilegiarão ambas as fruições (presencial e virtual) e que escolherão uma ou outra em função de factores temporais, circunstanciais, económicos, geográficos, estéticos ou movidos por outras subjectividades? Uma vitalidade crescente do mundo digital desembocará na criação de novos públicos para a Cultura dotados de perfis, gostos e motivações heterodoxos que, pela sua matriz, poderão vir até a reconfigurar o próprio conceito comum de “espectador”? E/ou — como já apontámos — um cansaço face ao torrencial mundo tecnológico provocará uma revalorização do contacto presencial na fruição estética? Iremos assistir à recuperação, em modo “revivalista”, de velhas fórmulas de recepção presencial e à distância, como o teatro radiofónico, os drive-in ou as tradicionais chamadas telefónicas (sem componente de vídeo) com conteúdos criativos, ou será apenas um fenómeno temporário? Incertamente, com tudo isto, em maior ou menor proporção, se desenhará o amanhã e o futuro da comunicação.

Até que ponto o online é uma ameaça à experiência presencial? A resposta imediata é que não sabemos (mais uma vez a incerteza) mas é certo que dependerá também, em grande medida, de cada um de nós. As instituições e programadores culturais, por seu lado, não controlam todas as variáveis que influem no comportamento dos públicos nem, em última análise, as repercussões de transformações socioeconómicas e tecnológicas globais de múltiplos efeitos directos e colaterais. Ainda assim, governos e demais agentes ligados à Cultura e às Artes podem e devem contribuir, pelas suas estratégias e práticas, para atenuar, num movimento regulatório e consciente, as facetas menos positivas de um turbilhão digital que já não tem recuo, potenciando, ao mesmo tempo, as diversas possibilidades de convivência entre os dois mundos.

Sim, é um facto indesmentível: o devir tecnológico e o incremento da literacia digital, de que são exemplos maiores o vídeo on demand e o pagamento sem contacto, o teletrabalho, as compras por Internet ou as redes sociais, não obstante os seus múltiplos benefícios, trazem consigo uma consequência deveras preocupante e “silenciosa” (há quem lhe chame um objectivo) a nível prático e simbólico: a redução dos contactos materiais e, especialmente, humanos. De certa forma, a covid-19 não deixou de “cair que nem uma luva” nesta fortíssima espiral oferecendo-lhe uma magnífica razão, como observa Michel Houellebecq: “Uma certa obsolescência que parece estar a afectar as relações humanas”. A dualidade é evidente: se nunca estivemos tão conectados como actualmente, conectividade não significa necessariamente harmonia (mas sim, amiúde, fragmentação e isolamento). E isso terá de fazer soar um inevitável alarme nas consciências e nos comportamentos. O digital não parece ser compatível com a empatia. E aqui recorro às sábias palavras do filósofo Franco Berardi: “O futuro só é imaginável quando estamos dispostos a investir emocionalmente nos outros, na amizade, na solidariedade e, claro, no amor. Mas se não formos capazes de sentir empatia o futuro não existe. São os outros que nos validam, que nos conferem humanidade.”

Seriam infindáveis os questionamentos críticos, de múltiplos ângulos, em torno dos actuais modelos e tendências de recepção cultural e artística, ressaltando sempre a ideia de que uma visão monocromática ou uma perspectiva a preto e branco não caberão, pelo seu cariz redutor, numa equação realista em torno dos planos presencial e digital. No meio de tantas indagações, uma certeza: para já, o enfoque massivo na Internet, com os seus pontos fortes e limitações, tem constituído uma medida excepcional para um tempo igualmente singular tanto na Cultura como noutras áreas da vida social, e mesmo que o presente movimento colectivo, centrado nas plataformas online, possa gerar novas ideias e práticas, não transitórias, que perdurem pós-pandemia (em contornos por agora incertos), será, em última análise, o lastro do tempo a abrir (ou não) esse caminho.

Mas não deixemos de persistir nessa demanda resistente e utópica em prol da primazia de algo absolutamente único: a presença do humano, a cumplicidade do afecto, o conforto da cadeira habitual, o calor do holofote, o solavanco sonoro no peito, a magia do gesto mais ínfimo, a respiração do momento, o culto do silêncio, o desassossego do corpo, a tensão invisível da sala, a nudez da lágrima, a densidade do espanto, a elevação do espírito, o frémito do aplauso, a surpresa do desfecho, a expectativa do encore, o aconchego do autógrafo, a vibração da comunhão colectiva — toda uma gramática emocional e simbólica, partilhada, que a tecnologia, para já, apenas toca com a ponta dos dedos.

Partindo dessa premissa vital, esta(re)mos abertos a novos paradigmas culturais, em que físico e digital coexistam e se complementem por criativas vias? José Gil tem-nos vindo a alertar para um desafio maior: conseguir aglutinar o que é heterogéneo. Nesta estimulante “terra de ninguém”, onde permanência e alteridade se cruzam, vivamos devagar e com imaginação este tempo subjectivo de escuta e aprofundamento da espessura dos temas, para que mais tarde não esqueçamos, para que, como diria Kundera, se mantenha o vínculo secreto entre lentidão e memória.

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