Teletrabalho ou a disponibilidade contínua
Acabei de almoçar o primeiro almoço num dia de semana desde as férias de Natal. De caminho caíram mais dez emails na caixa de correio e a chefia a perguntar onde é que eu estou. Conclusão: não devia ter comido. E já nem vou comer, acabei com os almoços.
Estou exausto. Acordo todos os dias às 6h, fins-de-semana incluídos, e de manhã à noite, sete dias por semana, não tiro os olhos do telemóvel, do e-mail e do computador. Não que me canse olhar para um telemóvel ou para um computador. Não me cansa. Mas com a plena consciência de poder ser acusado de incompetência caso falhe a resposta a um e-mail no espaço de cinco minutos, a ansiedade é uma constante enquanto, freneticamente, recarrego a página do e-mail duas vezes por segundo, 120 vezes por minuto, 120 batimentos por minuto, 7200 por hora, 12 horas por dia.
Se calhar a ansiedade é isto. Obrigados a ficar em casa, vivemos sob a culpa constante de justificar esta existência enquanto profissionais como se fosse nossa a culpa das ordens expressas para estar em casa diante de uma calamidade que a todos toca.
Sejamos claros: a culpa é nossa, ou assim nos querem fazer entender os superiores, pouco ou nada habituados a um mundo onde produzir foi sempre a palavra de ordem e quem não produz não existe nem deve existir. A culpa é nossa se o mundo está virado de pernas para o ar e as pessoas são pagas para ficar em casa.
Tendo em conta as rígidas estruturas hierárquicas das sociedades ocidentais onde o dinheiro é dono e senhor, é meu receio, quando tudo isto acabar, se isto tudo acabar, que a maior parte de nós tenha perdido o trabalho. Este processo já começou e muitos são os superiores hierárquicos céleres na execução dos despedimentos e lay-offs numa cultura onde não moram o dó e a piedade.
Não descuremos a verdade por detrás dos factos: para muitos empregadores, esta é uma oportunidade de ouro para terminar, renegociar e precarizar condições de trabalho e quando isto tudo acabar, se isto tudo acabar, de bom grado trabalharemos por tuta e meia sob pena de nem isso ter.
Por isso não largo os olhos do computador, como se disso dependesse a minha vida. E depende. Já nos basta não ter vida propriamente dita e a mesma constantemente em risco, não queremos perder o emprego por acréscimo. A verdadeira batalha trava-se dentro de cada uma das nossas casas e ganha quem responder mais depressa ao e-mail das chefias.
Tempo livre para estar em casa? Nem por isso, nada mesmo e, muito provavelmente, ainda menos em comparação com quando saía de casa para trabalhar. Nessa altura ainda tinha as sextas e os sábados à noite, hoje nem isso.
Acabei de almoçar o primeiro almoço num dia de semana desde as férias de Natal. De caminho caíram mais dez e-mails na caixa de correio e a chefia a perguntar onde é que eu estou. Conclusão: não devia ter comido. E já nem vou comer, acabei com os almoços.
Dói-me a cabeça, não é razoável nem expectável esta falta de empatia de quem está ao leme, como se estivesse tudo bem e fosse um dia normal de trabalho, dia esse passado em casa por nossa vontade.
Mas não é um dia normal de trabalho, nem sequer é um dia normal, os dias não são normais, as semanas não são normais, já não eram, agora muito menos e nem sequer nos podemos queixar ou falar com alguém: é preciso manter as aparências. Para nosso bem, assim nos dizem. Este problema, a nossa competência ou a falta dela, é só nosso e não é para contar a ninguém sob pena de passarmos a persona non grata e, por conseguinte, dispensável.
Não me atrevo a abrir um livro, a ler o jornal, a ver televisão ou um filme, as horas e os dias são passados de olhos no ecrã, dormir mais de seis horas nem pensar e a disponibilidade é contínua. Estamos a viver uma distopia, um conto bizarro de ficção científica onde todos são culpados e vítimas ao mesmo tempo, enquanto a morte cega vive no meio de nós.
Neste conto, nesta história, a única certeza é a de não chegamos todos ao fim. Mas, e até prova em contrário, ainda estamos aqui, vivos, e até prova em contrário continuamos a lutar por cada fôlego e a acreditar num mundo melhor, melhor que isto, não é difícil. Um mundo para agarrar com as duas mãos e à nossa espera de braços abertos na última página do último capítulo deste livro, o maior das nossas vidas.