O direito ao prazer
O ser humano adapta-se ao sofrimento, mas não é para isso que aqui andamos. Não é para sobreviver, mas para viver inteiramente. Um sistema que não seja capaz de o proporcionar à larga maioria não tem de ser questionado?
Muitas contradições, mas apesar de tudo algum bom senso e humanidade, no meio da desordem pandémica que nos veio lembrar que, além de vulneráveis, não sabemos tudo, existindo inúmeras incertezas, que não devem ser fáceis de gerir por quem decide. Numa frase seria assim que muitos de nós descreveriam a actuação equilibrada de alguns governos, entre eles o português, durante o presente contexto.
O que não os iliba de incoerências. Tentou salvaguardar-se a saúde pública e, depois, a economia, e logo aí começaram as discrepâncias, a começar por essa ideia romantizada de que toda a população esteve confinada, o que não é verdade. Uns foram obrigados a sacrificar-se porque se tornaram essenciais (distribuição, transportes, saúde, etc.) e outros (construção civil, fábricas, etc.) porque não tiveram alternativas e na hierarquia de protecção, existem empresas e poderes públicos que não se importam de os sacrificar.
O espaço doméstico, ele próprio, transformou-se num paradoxo, deixando de ser o local onde os corpos permanecem, para se transformar em centro de produção, consumo e controlo político – com a tolerância da maior parte – ao mesmo tempo que se revelam também lugares não-imunes, porque se põe vidas em risco, começando pelos que fazem entregas ao domicílio, e toda a cadeia de actividades que suporta essa dinâmica.
Nestes meses reduziu-se os seres humanos à existência biológica, trabalho e alimentação. Agora a ideia é que temos de dinamizar o sistema socioeconómico e fazê-lo reverter a meses atrás. Dá que pensar. Em todos os discursos é dado como inevitável que vem aí uma crise. Naturalizou-se que o sistema não possui recursos, nem vai encontrar respostas para amenizar o sofrimento de imensa gente. Interessa, então, perguntar: o que se pretende salvar? Se não é o emprego para todos, o minorar das desigualdades e uma vida digna para a maioria (porque isso, dizem os entendidos, não vai ser possível), é o quê? Os monopólios tecnológicos? As oligarquias financeiras? A mercantilização da existência? A competitividade como racionalidade? Um sistema em implosão que tem sido uma máquina de delapidar o planeta, com a violência exercida a virar-se contra os seres humanos? É que foi tudo isso que nos trouxe até aqui.
Nos últimos meses, os mais vulneráveis foram os que sofreram mais. E agora dizem-lhes que isto ainda não é nada e o que pior está para vir. O ser humano adapta-se ao sofrimento. Mas não é para isso que aqui andamos. Não é para sobreviver, mas para viver inteiramente. Um sistema que não seja capaz de o proporcionar à larga maioria não tem de ser questionado?
Tudo aquilo que nos faz sentir vivos, nos últimos meses, o prazer, as sociabilidades, o lazer, o tempo livre, as artes e a cultura, têm sido colocadas no fim da cadeia das coisas que interessam, como se não estivesse tudo ligado. Durante algum tempo condicionar praias, espaços verdes ou orlas das cidades parecia, do ponto de vista da psicologia das massas, entendível. Agora não. O recado não pode ser: vá trabalhar, feche-se em casa e nem pense em evadir-se. Aceita-se a pedagogia e a educação cívica, mas não o paternalismo e o policiamento.
A hiper-digitalização da nossa vida permite-nos estar cada vez mais em contacto, mas é discutível se isso significa mais proximidade. É preciso criar comunidade, principalmente num momento em que o vírus isola. A solidão, o distanciamento social, o medo do “outro” e o receio da partilha da intimidade já andavam aí. O vírus intensificou-os. É preciso resistir-lhe. Não renunciar à sociabilidade como prazer, tendo todos os cuidados. Só dessa forma a saúde física e mental, e a possibilidade de erguer um novo tipo de comunidade, será possível. Somos mais do que apenas seres biológicos ou de produção e consumo. Queremos imaginar novas políticas e outras formas de cooperação, locais ou globais. O vírus é mutante e nós temos de o ser também. Indo das mudanças impostas para as mudanças que desejamos.