Façam à língua o mesmo que ao euro: igual na face, mas reversos diferentes
O único acordo admissível é reconhecer as variantes nacionais e fixá-las como partes de um corpo comum, o da língua portuguesa.
Como pedra lançada num lago, o Dia da Língua não cessa de produzir ondulações. Há dias, chegou-nos a mensagem que, a tal propósito, difundiu o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo. Disse ele: “A experiência humana não se narra num idioma global asséptico, invertebrado. Narra-se nas línguas específicas. Em cada qual a humanidade se articula em formas diferentes. Em cada língua há coisas que somente nela se podem dizer.” Pois. Já o primeiro-ministro português, António Costa, dissera à agência Lusa: “O português tem uma característica importante, tem-se sabido adaptar a diferentes territórios onde tem evoluído. […] Hoje é uma língua que pertence a muito mais pessoas no Mundo do que só a nós portugueses e isso traduz-se em formas diversas de escrever.” Impossível não pensar num dos poemas que o modernista brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954) incluiu no seu livro Pau Brasil (1925): “Para dizerem milho dizem mio/ Para melhor dizem mió/ Para peor pió/ Para telha dizem têia/ Para telhado dizem teado/ E vão fazendo telhados.” (“Vicio na fala”, pág. 33).
Porquê? Porque dizem “telhados”, mas fazem “teados”. Uma atitude coerente com declarações como estas seria olhar para a língua portuguesa como um património comum, sim, mas com pleno direito às suas diferenças: orais, vocabulares e ortográficas. E não insistir num acordo ortográfico moribundo que a ninguém aproveita. Um bom exemplo foi-nos dado pela moeda única europeia, o euro. Cada moeda de 1 euro tem o mesmíssimo valor e a mesma imagem numa das faces; mas na outra são todas diferentes, reflectindo cada qual o seu país. Assim podia ser a língua portuguesa: com o mesmo valor para cada uma das suas variantes nacionais, mas reservando cada qual os seus traços específicos, aplicáveis nos respectivos países. A insistência num acordo ortográfico que ignora tais diferenças, fingindo que não existem, já não fazia sentido em 1945 nem em 1990, mas hoje é cada vez mais obsoleta.
Um pequeno exemplo, retirado do inglês: escrevamos no programa de texto Word as palavras britânicas colour, centre, grey, mould, plough, theatre, traveller e as suas variantes americanas color, center, gray, mold, plow, theater e traveler. Se as sujeitarmos ao corrector ortográfico do Reino Unido, vemos que ele só valida as primeiras. Idem, com os correctores ortográficos (são 16, ao todo) da África do Sul, Austrália, Belize, Caribe, Hong Kong, Irlanda, Jamaica, Malásia, Nova Zelândia, Singapura, Zimbabwe e Trinidad e Tobago — aceitando, apenas esta última, o uso de dupla grafia em plow/plough. O corrector dos Estados Unidos só “chumba” as variantes britânicas colour, centre, mould e traveller, admitindo como aceitáveis as grafias das restantes; o das Filipinas idem, embora rejeitando a grafia theatre; e o Canadá aceita todas as variantes.
O que sucede no nosso idioma? Mesmo com o acordo “unificador”, há no programa Word duas variantes no corrector ortográfico: “Portuguese (Portugal)” e “Portuguese (Brazil)”. Onde estão os outros países? Optam, que remédio, por uma ou outra! Quem ousa falar em “colonialismo” a propósito da rejeição do acordo, devia reflectir nisto. Porque “colonialismo” é o que o acordo ortográfico veio reforçar, ao pretender impor uma norma “universal” que afinal… são duas.
De modo ínvio, o dito Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) acolhe vocabulários nacionais (cada um com a sua bandeirinha), mas para os despejar num “saco” comum que é uma misturada inqualificável. Feito com critério, o que não sucedeu no VOC (como já aqui se demonstrou), essa poderia ser uma base para a fixação das variantes nacionais e o seu uso posterior nos correctores de texto, trabalho que não dispensaria um dicionário normativo comum (que até hoje não existe), consagrando nele todas as variantes, mas indicando explicitamente a sua etimologia e os países onde se aplicam.
Recorrendo a dois paladinos do acordo ortográfico, Evanildo Bechara disse em 2014 no Congresso Nacional Brasileiro: “O problema educacional da ortografia, do ensino da língua escrita, não se prende rigorosamente à ortografia, prende-se ao bom ensino de língua, a um desenvolvimento pedagógico (…). As mais complicadas são a inglesa e a francesa, e sabemos que o índice cultural desses dois países mostra que não é por uma reforma ortográfica que o índice cultural de um país vai melhorar”; e João Malaca Casteleiro afirmou ao PÚBLICO, no ano seguinte, 2015, que “se não houvesse esta necessidade de um acordo com o Brasil, não era necessário estar a mexer na ortografia: os ingleses não mexem há muito tempo na deles, porque não tem sido preciso”.
Aqui, têm razão. O único pressuposto errado é a “necessidade de um acordo com o Brasil”. Porque o único acordo admissível é reconhecer as variantes nacionais e fixá-las como partes de um corpo comum, o da língua portuguesa. Que se tenha feito o inverso, não espanta; e há até no Parlamento uma iniciativa legislativa de cidadãos para corrigir esse acto abusivo. Mas porquê, ainda hoje, insistir nesta indescritível e tão inútil pantomina?