E se os juízes europeus ultrapassaram os tratados para construir a Europa?
Construir a Europa pela via da “integração furtiva” através de um activismo judicial ou tecnocrático não é hoje alternativa à decisão política democrática. Essa forma de construção europeia vai alimentar a contestação populista (e não populista).
1. A questão é provocatória e pode parecer absurda. Mas é a consequência lógica do acórdão de 5 de Maio de 2020 do Tribunal Constitucional Federal alemão. Aí foi directamente posta em causa a actuação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), o qual foi duramente criticado por ter efectuado um julgamento considerado ultra vires — expressão latina que significa actuar para “além dos poderes”.
A ser assim, na prática, o referido julgamento do TJUE ultrapassou a lei, neste caso os Tratados da União Europeia. É necessário lembrar que no seu acórdão, os juízes do Tribunal Constitucional Federal alemão repudiaram as conclusões do TJUE de 11 de Dezembro de 2018. Este último tribunal, num processo de reenvio prejudicial, tinha considerado que a actuação do BCE estava dentro das competências que o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TJUE) conferiam à autoridade monetária europeia. Por isso, a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão caiu como uma “bomba” no TJUE.
Num invulgar comunicado de imprensa (nº 58/20) publicado a 8 de Maio de 2020, pode ler-se o seguinte: “Os serviços da Instituição nunca comentam uma decisão de um órgão jurisdicional nacional. De uma maneira geral, cabe recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um acórdão proferido a título prejudicial por este Tribunal vincula o juiz nacional relativamente à solução do litígio no processo principal.”
2. Este conflito, que coloca tribunal contra tribunal, ao mais alto nível jurisdicional, é provavelmente uma surpresa para a generalidade dos cidadãos europeus. Todavia, a questão mais profunda e que está subjacente a essa conflitualidade é quase tão antiga quanto a própria União Europeia.
A diferença fundamental é que a discussão, até agora, se fazia em circuito fechado, quase só nos meios jurídicos, sendo um assunto que não era objecto de debate e escrutínio da opinião pública. Era também encerrada na opacidade de uma conveniente terminologia jurídico-tecnocrática, para afastar o cidadão de tentações de se imiscuir na discussão desse assunto.
Mas qual é, na sua essência, o problema? O princípio da primazia, ou do primado do direito da União Europeia sobre o direito dos Estados-membros, é uma boa forma de explicar o problema.
Se estivesse inscrito num artigo dos Tratados de uma forma clara e precisa não levantaria qualquer problema de maior. Essa era a solução do Tratado Constitucional Europeu (a chamada Constituição Europeia). Continha a seguinte disposição no artigo I-6º: “A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no exercício das competências que lhe são atribuídas, têm primazia sobre o direito dos Estados-membros.” Qualquer cidadão mediamente culto entenderia, assim, o seu significado.
3. Mas o Tratado Constitucional Europeu não entrou em vigor, pois foi rejeitado em 2005 em referendo, pela França e pela Holanda, sendo posteriormente abandonado. E essa disposição jurídica não foi colocada no Tratado de Lisboa que lhe sucedeu e hoje está em vigor.
Para além disso — e esse é o aspecto mais importante aqui — nunca existiu esta formulação, ou outra parecida, num artigo(s) de tratados anteriores. Aqui começa o grande hiato de percepção sobre este assunto entre os meios jurídicos e a opinião pública. Aquilo que o não-jurista, ou seja mais 99% da população europeia, provavelmente pensa é que, como não está escrito nos Tratados, não existe um fundamento legal para a primazia do direito da União Europeia sobre o direito dos Estados-membros. Esse é o cerne do problema.
Na realidade o que os juízes do TJUE têm feito desde os anos 1960 são interpretações dos Tratados (dos antigos e dos actuais), que levam, na prática, a um resultado idêntico. Quer dizer: apesar de nem os Tratados das Comunidades Europeias, nem os os atuais Tratados da União Europeia, nunca terem tido esse princípio inscrito, os juízes europeus criaram uma tese jurisprudencial — o caso clássico fundador dessa tese é o acórdão Flaminio Costa versus Enel de 15 de Julho de 1964 — onde afirmam a supremacia, ou primado na linguagem jurídica mais usual, das normas jurídicas europeias sobre as normas nacionais. É a isto que se refere o citado comunicado de imprensa nº 58/20 do TJUE, em reacção ao acórdão do Tribunal Constitucional alemão de 5 de Maio.
4. Para além de uma discussão estritamente legal sobre a tese jurisprudencial referida, qualquer cidadão europeu pode colocar esta questão: independentemente dos seus méritos jurídicos, a “solução dos juízes” europeus de considerar que dos Tratados se pode extrair o princípio do primado — mesmo sem estar lá expressamente inscrito — tem o apoio o democrático da população e da generalidade dos Estados-membros da União Europeia?
Se tem, por que razão com tantos tratados já feitos após os iniciais (Tratados de Maastricht, de Amesterdão, de Nice, e agora de Lisboa) nunca foi lá inscrito, de forma clara e inequívoca, num artigo dos tratados? E em particular, por que razão o actual Tratado de Lisboa — que aproveitou mais de 90% do texto da falhada Constituição Europeia — deixou cair esse artigo sobre a primazia do direito da União?
Percebe-se bem como a questão é extraordinariamente incómoda e tem sido evitada. Mas esse é um mérito que o acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão de 5 de Maio tem. Projecta a discussão também para a opinião pública europeia, num assunto que, pela sua grande importância, sempre deveria ter existido um grande debate público que permitisse aos cidadãos europeus perceberem — e se identificarem, ou então criticarem — a forma como a Europa tem sido construída.
5. Tal como o Tribunal Constitucional alemão, também o TJUE é um tribunal político no sentido em que muitos dos casos sobre os quais se pronuncia não são puramente jurídicos. Além do mais, o timing das decisões judiciais também nem sempre é um acaso. No caso do TJUE, o histórico das decisões mostra como os seus juízes não quiseram ser apenas “a boca que pronuncia as sentenças da lei”. Esse era o papel que lhes estava atribuído por Montesquieu no “Espírito das Leis” (1748) e na teoria clássica da separação dos poderes, na génese do constitucionalismo modernos. Ambicionaram mais e foram agentes activos da construção europeia, não meros intérpretes passivos desta.
Podemos ver aí muitas virtudes. Certamente os juízes do TJUE tiveram, ao longo do tempo, um papel importante na construção das bases jurídicas da integração europeia. Esse papel, se tem uma faceta inquestionavelmente meritória, tem outra problemática, que até agora não era discutida, nem era escrutinada pela opinião pública europeia. Não levará esse activismo judicial do TJUE, tipicamente impregnado de ideais europeístas-federalistas, a um quebrar fronteiras da separação dos poderes, entre o jurídico e o político?
Por outras palavras, das suas interpretações (muito) extensivas não resultam, na prática, alargamentos das competências da União Europeia e das suas instituições, que, por princípio só poderiam (e deveriam) ser feitas por alterações dos Tratados? Levando mais longe a dúvida surge a interrogação provocatória inicial: não terão os juízes europeus ultrapassado os Tratados para construir a Europa? O problema não é apenas teórico, como mostra o caso do acórdão do Tribunal Constitucional Federal alemão.
Está no cerne do actual conflito que colocou tribunal contra tribunal, ao mais alto nível jurisdicional. Neste conflito, e numa linguagem que lembra o cisma da Cristandade, há duas jurisprudências que se “excomungam” entre si, cada uma invocando valores máximos e irrenunciáveis sobre a outra.
6. Vale a pena aqui lembrar o que nas discussões teóricas sobre a União Europeia se chama a “integração às escondidas” (integration by stealth). Se aceitarmos a tese do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha terá sido assim que o BCE ganhou competência para comprar dívida publica ultrapassando nomeadamente, o teor do artigo 123º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Há muitos outros casos onde essa crítica é feita à União Europeia, como por exemplo, em matéria de investimento directo estrangeiro. (Ver Sophie Meunier, “Integration by Stealth: How the European Union Gained Competence over Foreign Direct Investment”, European University Institute, Working Paper RSCAS 2014/66).
Embora a opinião pública europeia talvez só agora tenha descoberto o problema — e com grande surpresa —, já há muito tempo que esta forma de integração decorre. (Ver, por exemplo, Eric Stein “Lawyers, Judges, and the Making of a Transnational Constitution” in The American Journal of International Law, v. 75, n.º 1, 1981, pp. 1-27.). Mas, em termos mais políticos democráticos, é legítima esta forma de construir a Europa na qual o TJUE tem tido um papel importante ao validá-la e impulsioná-la com a sua jurisprudência?
Muitos serão tentados a pensar que sim, como os fins são bons — mais Europa, mais ajuda do BCE aos Estados-membros em dificuldades —, os meios estão justificados. Todavia, de forma consciente ou inconsciente, estão a pensar à Maquiavel, , que já no século XVI aconselhava assim quem governa: “faça, pois um príncipe por vencer e por manter o seu Estado e os meios serão sempre julgados honrosos e de todos louvados” (ver “O Príncipe”, cap. XVIII). Mas esse é o princípio do cinismo político e seria também a máxima ironia se este prevalecesse numa União Europeia que se quer afirmar pelos valores contra a realpolitik.
7. É curioso notar como eurocépticos e certos federalistas partilham um gosto em comum recorrendo a hipérboles catastróficas sobre a União Europeia. Os primeiros celebram nesta altura a decisão do Tribunal Constitucional alemão como um sinal da desagregação da União Europeia e o fim da “opressão sobre os Estados-Nação”, esperando que outros tribunais nacionais sigam o exemplo.
Quanto aos segundos, agitam o fantasma da ameaça existencial à União Europeia para alarmar os cidadãos e políticos europeístas. (Na realidade, pretendem mais preservar o seu programa de “integração às escondidas” durante demasiado tempo não escrutinado nem contestado.) Urge serenidade e uma discussão séria. Como dizia Robert Schuman a 9 de Maio de 1950: “A Europa não se fará de uma só vez, nem de acordo com um plano único”. O activismo jurídico federalizante do TJU fez sentido no contexto histórico-político inicial das Comunidades, onde tudo era novo. Mas a criação de uma Europa tecnocrática e despolitizada foi também uma anormalidade histórica em democracias liberais, só compreensível e aceitável pelas circunstâncias do imediato pós-guerra.
Em 2020, já não estamos nos primórdios da integração europeia, nem no contexto político do pós-guerra. Estamos numa fase de integração muito mais avançada — uma união económica e monetária — a qual implica um modelo de integração necessariamente mais politizado (e mais contestado). Se as instituições da União não têm competências em certa área e necessitam delas — como parece ser o caso do BCE quanto aos programas de compra de dívida pública —, a via deverá ser a alteração dos tratados feita pelos políticos mandatados para o efeito.
O acórdão de 5 de Maio de 2020 do Tribunal Constitucional Federal alemão torna inevitável essa discussão pública. Construir a Europa pela via da “integração furtiva”, através de um activismo judicial ou tecnocrático, não é hoje mais alternativa à decisão política democrática. Para além de outros problemas jurídico-políticos sérios que levanta, essa forma de construção europeia vai alimentar a contestação populista (e não populista). É isso que hoje estamos a sentir no meio de uma crise de transformação e politização da União.