Restaurantes: “Deixámo-nos levar. Somos todos culpados. O que podemos fazer para tornar isto melhor?”
O simpósio online The Power of Food terminou com depoimentos emotivos de grandes chefs mundiais, que procuram soluções. “Não consigo salvar o mundo, não consigo salvar o meu restaurante, não consigo salvar a minha equipa”, desabafou o brasileiro Alex Atala.
Quando, por causa da pandemia de covid-19, fechou as portas do seu restaurante nova-iorquino, o Eleven Madison Park, com três estrelas Michelin, Daniel Humm percebeu que era o fim de um tempo. “Sabia que, com a partida de muitas pessoas da equipa, nunca mais seria o mesmo. Foi devastador”, contou terça-feira, o segundo e último dia do simpósio The Power of Food, organizado pelo Sangue na Guelra, em live streaming.
Mas sabia também que não podia baixar os braços. “Tinha a cozinha, tinha o contacto dos fornecedores, conseguiria algum dinheiro.” Foi perceber como é que funcionavam as cozinhas sociais que alimentam os que mais precisam e decidiu, em parceria com a ONG Rethink Food NYC, transformar o seu restaurante numa delas, servindo milhares de refeições por dia, para ajudar a população de Nova Iorque, mergulhada no seu pior pesadelo.
Tem uma equipa que esteve sempre disposta a tudo, mas quando enviou uma mensagem a 200 pessoas perguntando quem queria vir ajudá-lo, recebeu oito respostas. “As pessoas estavam com medo”, recorda, comovido. “Nunca esquecerei os que apareceram naquela primeira manhã.”
A vida de Daniel Humm mudou, como mudaram as de todos os chefs do mundo. Foi isso que ele veio contar ao The Power of Food numa conversa com o brasileiro Alex Atala, que também fechou o seu D.O.M., já se viu obrigado a dispensar grande parte da sua equipa e que, quase de lágrimas nos olhos, desabafou: “O sonho acabou, acordámos no pesadelo mais negro.”
Humm olha para trás com um misto de sentimentos. “Viajámos pelo mundo, servimos os ricos, deixámo-nos levar. Somos todos culpados. O que podemos fazer para tornar isto melhor?”. Quer alimentar os que verdadeiramente precisam, mas admite não conseguir responder de forma inequívoca à pergunta que um amigo lhe fez: tens a mesma paixão por isso que tiveste por conquistar três estrelas? Não sabe. Tal como não sabe se conseguirá algum dia reabrir o Eleven Madison Park e acredita que se o fizer terá “metade ou 30% dos clientes”.
Não virou as costas ao fine dining. Mas olha o mundo de outra forma: “Quero continuar a usar a comida como arte. É a minha paixão. Vamos continuar a alimentar os 1% do topo, mas temos que alimentar também os 10% que estão em baixo.” No futuro, vai continuar com a Rethink Food, a fornecer comida a partir da refeição diária que é feita para os seus funcionários.
Temos que mudar enquanto humanos, diz-lhe, de São Paulo, Alex Atala. Neste momento sente-se impotente. “Temos que fazer alguma coisa. Eu não consigo salvar o mundo, não consigo salvar o meu restaurante, não consigo salvar a minha equipa. Mas juntos conseguimos.” Preocupa-se com as mais de 100 pessoas que trabalhavam com ele, mas também com “outras 100 famílias” de pequeníssimos produtores fornecedores dos seus restaurantes, que, como peças de um dominó, caem quando ele cai. E, no Brasil, cair significa deixar de conseguir pôr comida na mesa.
Ao longo de terça-feira, pelo ecrã do The Power of Food, tendo como anfitriões Ana Músico e Paulo Barata, os organizadores do evento, patrocinado pela cerveja Estrella Damm e apoiado pelo Esporão, pela S. Pellegrino, Nescafé e Alaska Seafood, passaram alguns dos grandes chefs do mundo, num dia que começou com uma conversa entre Henrique Sá Pessoa, do Alma, em Lisboa e, em Itália, Eugenio Boer e Carlotta Perilli (do Bu:r, de Milão), e terminou com outra entre o português José Avillez (Belcanto, Lisboa) e o norte-americano Dan Barber (Blue Hill, Nova Iorque) centrada sobretudo na preocupação em ajudar os produtores com os quais habitualmente trabalham.
Unidos pela circunstância de se terem visto forçados a fechar as portas, os chefs mostraram estados de espírito diferentes, planos para o regresso também distintos, mas todos vieram partilhar a lição de humildade que aprenderam nos dois últimos meses.
De Banguecoque, Gaggan Anand, em conversa com o crítico português Miguel Pires, explicou que vai voltar-se para os clientes tailandeses agora que os visitantes estrangeiros que lhe enchiam os restaurantes não podem ir. E prometeu que passará a ter uma quota de lugares reservada para os nacionais, que não o deixaram cair nos últimos meses – assim como preços mais acessíveis. Também no menu, os produtos locais vão ganhar novo protagonismo, garantiu, mostrando uma manga produzida na Tailândia à qual vai dar “todo o amor”.
Quer que a experiência de quem vai comer aos seus restaurantes continue a ser de alegria porque acredita que “as pessoas voltarão com fome de socializar”, mas também ele está convencido de que não se passa por isto incólume. “Isto é uma coisa global, compreendemos a dor de todos, temos que sobreviver, mas não podemos celebrar”, diz, temendo “o risco de se perder o fine dining para sempre.” No final, deixou um conselho: “Esqueçam a fama. Como é que ela me ajuda agora? Toda a gente tem um caminho pessoal para a recuperação, e é um caminho de iluminação, como no budismo.”
A partir da Eslovénia, Ana Rós, do restaurante Hisa Franko, partilhou também o seu caminho nestes dois meses. Manteve a equipa, organizou aulas para formação de todos, transformou o leite dos animais das montanhas vizinhas, que corria o risco de se desperdiçar, em gelados. E prepara-se para, quando puder, reabrir, mas “sem concessões”. O Hisa Franko continuará a ser “exactamente o mesmo sítio que era há dois meses” – “não vou transformar-me numa osteria ou num restaurante de sushi” –, ao mesmo tempo que aposta num centro de pesquisa para ajudar a encontrar “soluções de longo prazo” para os agricultores da sua região, junto à fronteira com a Itália.
A sensação de fragilidade é muito grande. “Estamos todos no mesmo cenário – somos seres humanos cheios de medo”, resume Alex Atala. “Como é que atravessamos o rio? Com valores reais: amizade, família, natureza, tomarmos conta uns dos outros. São os ingredientes de uma nova receita, de um novo mundo, de uma nova sociedade.”
Mas todos esperam a oportunidade oferecida por “um novo princípio”.“Estamos em estado de choque com o pouco que é preciso para fazer desaparecer toda uma indústria”, confessou Humm. Para logo de seguida reconhecer que são, apesar de tudo, privilegiados: “Que sorte temos em trabalhar com comida. Foi sempre a comida que nos deu as respostas para avançar. Porque é que não estamos sempre a alimentar as pessoas que precisam? Pensar que vamos voltar ao que éramos será uma oportunidade perdida.”
Nota: a autora deste texto participou na iniciativa The Power of Food como oradora não remunerada na sessão sobre o papel do jornalismo gastronómico na actual crise