“Há algumas famílias que se sentem muito aliviadas com a situação presente”

Ao fim de quase dois meses de confinamento, há famílias que olham para este período com cansaço. Porém, há também quem descreva estes tempos como uma oportunidade — e não esteja ansioso pelo desconfinamento.

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“Quem está em teletrabalho de uma forma mais intensa terá mais dificuldade em gerir os tempos em família” Charles Deluvio/Unsplash

O isolamento deixou alguns sozinhos, mas também fez que outros ficassem mais acompanhados do que nunca: sempre pelas mesmas pessoas, num mesmo espaço, onde todos se desdobram em múltiplas personagens.

“O mais parecido que tivemos com isto foram as férias quando os miúdos eram mais pequenos — e é sempre uma situação diferente”, recorda Luís Castelo. “Antes, passávamos o dia todo sem nos vermos; cruzávamo-nos ou não ao pequeno-almoço, mas cada qual tinha a sua própria rotina. À noite, sim, jantávamos juntos.” A maior dificuldade deste intenso convívio, com os miúdos com as aulas à distância e a mulher em teletrabalho de forma contínua, é “lidar com o facto de que qualquer questão pode ser amplificada e a tensão precisa de mais tempo para se dissipar”.

A tensão alimentada por “um medo difícil de identificar” tornou-se, como descreve a psicóloga e terapeuta familiar Sofia Nunes da Silva, “um elemento novo e invisível no seio de muitas famílias”, considerando que para o combater “a receita, às vezes, não é falar mais, mas optar por actividades prazenteiras que não obriguem ao diálogo”, evitando, assim, a escalada de um conflito que noutra altura não o seria. Quando se atinge um clímax, Sofia Nunes da Silva diz que se pode recorrer aos serviços da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar que, desde 6 de Abril, tem uma linha de apoio (+351 213 555 193), onde diariamente têm chegado alguns pedidos de ajuda.

Porém, explica, o que é essencial para não se chegar a esse ponto é “definir fronteiras; respeitar espaços e tempos individuais, deixando o encontro para, por exemplo, o tempo da refeição”.

A regra dos encontros à refeição, explica Luís Castelo, é o que tem ajudado a que o quotidiano corra de feição: “Definir uma hora de almoço e uma de jantar deu-nos uma disciplina importante”, diz, acrescentando que assumiu as tarefas do dia-a-dia por ter mais disponibilidade (o espaço onde trabalha está encerrado; estando a leccionar algumas aulas à distância). “Excepto lavar a loiça; tenho sempre a boa desculpa de já ter feito a refeição!”

“Não estamos mal em casa juntos, mas também sabemos que saudável não é.” No entanto, refere, sente que têm sorte por ter acontecido agora: “Os nossos filhos já são adultos [de 20 e 22 anos]; quem tem crianças ou jovens deverá ter mais dificuldades.”

Gerir os tempos em família

Maria (nome fictício), casada e com uma menina de 7 e um menino de 2 anos, reforça a teoria de Luís Castelo. “É positivo estar mais tempo com os filhos, mas há dias em que não os posso ver nem pintados de ouro”, gargalha, ao mesmo tempo que relata já ter tido reuniões com os dois “literalmente em cima” de si.

“Quem está em teletrabalho de uma forma mais intensa terá mais dificuldade em gerir os tempos em família”, sintetiza a terapeuta familiar Sofia Nunes da Silva. E é esse o caso de Maria.

Estando, desde o início do primeiro estado de emergência, em teletrabalho na área da saúde e segurança ocupacional — o que significa que tem tido mais que fazer do que noutras alturas —, tenta conciliar as responsabilidades laborais com os dois filhos. Tem-lhe valido, refere, o facto de o marido ter sido dispensado de se apresentar ao serviço e de este apoiar ambas as crianças.

No entanto, mesmo que confesse as saudades “do silêncio dos tempos de condução, de ir ao café, dos almoços em casa dos pais”, encara estes dias como “uma oportunidade para a família crescer em conjunto”, com pontos negativos e outros que compensam. É que, se, por um lado, sente falta da ajuda preciosa que era ter uma empregada doméstica uma vez por semana, por outro, envolve hoje a filha mais velha em tarefas domésticas que nunca tinha tentado antes.

Nem tudo são rosas: nota que a criança manifesta muitas saudades da escola e dos amigos, e até alguma irritação — “odeia a telescola”, conta. Um estado de espírito presente em muitos dos mais pequenos com que Sofia Nunes da Silva tem falado. “De uma forma geral, têm saudades do convívio”, ainda que ressalve que a maioria não manifesta vontade de sair de casa, não tanto pelo medo, mas pelo sentimento de conforto. A psicóloga reforça, no entanto, a ideia de que também os pais têm de dar espaço aos filhos, que também não estavam habituados de estarem permanentemente sob o controlo parental: “Não podem achar, por exemplo, que passaram a ser também os professores.”

Ao sabor dos filhos

A forma como se tem lidado com o tempo de confinamento não depende apenas de se estar em teletrabalho ou da idade das crianças da casa. O temperamento dos filhos também acaba por marcar o passo. “Pais com filhos mais rebeldes vêem-se em situações difíceis”, explica a psicóloga. E o mesmo se passa quando os pais passam o tempo a adaptar a sua abordagem a cada criança.

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Caleb Woods/Unsplash

Em teletrabalho tal como a mulher, Paulo Dinis tem o seu dia dividido entre estar atento ao trabalho e em simultâneo lidar com a preocupação da mais velha, de 8 anos, com a reguilice da do meio (“com 5, não leva nada a sério”) e com a “capacidade de inventar” do mais novo, com 2 anos. Tem ajudado a manutenção de regras: “Mantêm os mesmos horários de irem para a cama, de almoçar, jantar.”

“Não está a ser fácil, mas também tem sido uma oportunidade para fazermos coisas que não faríamos noutra situação, como voltar aos jogos de tabuleiro.” Por outro lado, sente que este tempo o ajudou a ser capaz de se lembrar de si próprio quando tinha as idades das suas crianças — e a ser mais tolerante.

Isabel também tem a casa cheia — até mais do que antes. A si, ao marido, aos três filhos (de 13, 16 e 18 anos), aos três cães e aos dois gatos juntaram-se a cunhada e a cadela desta. “Vivemos numa casa dividida por andares, o que ajuda” e, com os três miúdos com aulas e todos os adultos em teletrabalho, “às vezes só nos encontramos ao fim do dia ou às refeições”.

A primeira fase foi mais complicada, mas os próprios miúdos acabaram por ajudar à organização e, numa operação digna de qualquer programa televisivo, criaram um quarto a partir de um escritório, conseguindo cada qual o seu próprio espaço.

Também a gestão das tarefas da casa mudou. Antes, havia uma pessoa que assegurava as limpezas maiores, ficando para si a manutenção. Agora, sem essa colaboradora (“ficou como nós: a trabalhar em casa”, brinca) todos cooperam: “Ao sábado, cada um ocupa-se de diferentes áreas e tarefas.”

Mesmo assim, e apesar de considerar que está tudo a correr bem, há dias mais complicados: “Não sou à prova de bala”, desabafa. E já aconteceu meter “um dia de folga” — e a família respeitou.

O quebrar da rede

Do que Isabel sente mais falta é do jantar semanal com a família completa. “Tínhamos uma rotina que implicava que, todas as quartas-feiras, os avós iam buscar os três à escola e traziam-nos para casa para jantarmos todos.”

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Allen Taylor/Unsplash

A rede de apoio com que contava, dos pais e dos sogros, também é uma das coisas que Catarina Coutinho mais sente falta, não vendo a hora de regressar ao ritmo que tinha antes. “Uma coisa é estar em casa por opção, outra é estar por obrigação.”

Professora e a dar aulas numa escola a cinco minutos da residência, o que implicava não sofrer com o trânsito e até às vezes poder ir almoçar a casa, explica que o facto de a sua vida entre a casa e o trabalho ser relativamente fácil faz com que sinta tanta falta do antes.

Além disso, com um rapaz de 7 anos, tinha toda a semana programada num esquema em que contava com o apoio dos avós: “O meu filho está tão bem comigo como com os meus pais ou sogros.” Isso permitia-lhe “não andar a correr” e, algumas vezes, ter momentos sociais de ir jantar fora, ir a um concerto, enquanto, relata, o rapaz contava com todo o mimo dos avós e as brincadeiras com os primos.

O mais complicado, nas duas primeiras semanas, foi gerir a casa, sem a empregada de limpeza que ia uma vez por semana e com todas as refeições — “e com um miúdo de 7 anos não dá para ser qualquer coisa ao almoço”. Depois, ao longo do dia, multiplica-se entre ser professora do filho, professora dos seus alunos, mãe, etc. Por tudo isto, e apesar de sublinhar estar grata por estarem bem e por gerirem o dia-a-dia em casal sem nenhuma dificuldade, está desejosa de voltar ao normal.

Esse antes é, pelo contrário, o lugar onde Ana Conceição não quer voltar. “Quase me sinto culpada por dizer isto e sei que há muita gente a sofrer, mas nunca vi isto [de ficar em casa fechada em família] como uma coisa má.”

A terapeuta Sofia Nunes Silva explica que, enquanto as pessoas que estavam mais apoiadas terão maior vontade de regressar ao estado anterior, “há algumas famílias que se sentem muito aliviadas com a situação presente”.

É o caso de Ana Conceição, mãe de duas meninas em idade pré-escolar, cujo dia-a-dia implicava muito tempo no trânsito e demasiadas horas fora de casa. E, apesar de se ter mantido em teletrabalho, tal como o marido, e de afirmar que tem sido “muito cansativo”, não lhe passa pela cabeça queixar-se: “Eu pedi isto muitas vezes: ter tempo para ver as minhas filhas a crescer.” Já o tempo que passava no trânsito, passou a dedicá-lo ao seu hobby: o desenho.

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Para conseguir aproveitar, porém, teve de prescindir da ideia de ter sempre a casa imaculada, ainda que a divisão das tarefas em casa seja natural e feita de forma equilibrada e, por isso, não tenha sido um factor de stress.

Sente falta de algumas coisas, como das pausas no trabalho: “Em casa, as pausas do teletrabalho representam outro trabalho.” Mas aquilo de que tem mesmo saudades é do silêncio. “De vez em quando, compro-o, dando acesso às pequenas ao telemóvel, que não costumam ter”, confessa, num tom de voz em que se percebe o sorriso de quem encontrou ferramentas para atingir o equilíbrio.

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