(Re)comecemos pois!…

Por efeito do poder de um vírus nos confinámos e distanciámos no teletrabalho improvisado, na telescola confusa, no telecarinho possível, no teletédio disfarçado, nas telesolidões partilhadas e no medo visceral e calado.

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Sven Scheuermeier/Unsplash

Garanto que a intenção dos parênteses não é a de um recurso de estilo, para tornar o título mais apelativo, mas sim a de enfatizar que é nestes parênteses que reside a essência dos tempos que se avizinham.

Porque não se tratará, de facto, de recomeçar, como se nos fosse possível regressar a esse ponto exacto em que deixámos as nossas vidas (e tal como as deixámos), no momento em que tudo mudou e, por efeito do poder de um vírus, nos confinámos e distanciámos no teletrabalho improvisado, na telescola confusa, no telecarinho possível, no teletédio disfarçado, nas telesolidões partilhadas e no medo visceral e calado.

E sei, porque eu própria o fiz, que usámos com muita frequência, referindo-nos a estes tempos estranhos, a expressão “vida em suspenso”. E no uso dessa expressão estava implícito (numa certa inocência de quem, pela primeira vez, se vê confrontado com uma realidade demasiado estranha para se compreender ou, sequer, imaginar) o pressuposto de que haveria um quotidiano — com esse tanto que os quotidianos carregam de rotinas e de hábitos, de gostos e desgostos, de certezas e contrariedades — ali parado, na esquina do tempo, à nossa espera, à espera do nosso regresso.

Esta “vida em suspenso” constituir-se-ia, assim, como uma espécie de lapso espaciotemporal, até nos ser possível regressar ao dia-a-dia comum e, dessa forma, regressar também a nós próprios, num reencontro com esse nosso Eu, verdadeiro e genuíno, que, entretanto, parece ter cedido o lugar a uma criatura algo estranha, que sorrateiramente surpreendemos a mirar-nos, com o espanto dos desconhecidos, do outro lado do espelho.

Assemelhar-se-ia, este lapso nas nossas vidas, àquilo que dantes acontecia nas emissões de televisão (nesses tempos primevos de apenas um ou dois canais), em que seguindo-se à frequente, mas nem por isso menos inquietante, chuva cinzenta que ameaçava liquefazer o ecrã, acompanhada por uma estranha e persistente sequência de ZZZZZZZZZZZZZZZs e PIIIIIIIIIIIIIs, lá acabava por aparecer essa tão desejada e tranquilizadora mensagem: “A transmissão seguirá dentro de momentos.”

Desejámos, por entre o confinamento, a solidão e o medo, que a nossa vida fosse como essas sessões televisivas, e que a transmissão, disto que somos nós e as nossas vidas, pudesse, mesmo, seguir dentro de momentos.

E desejámo-lo como uma forma de nos protegermos da incerteza, da ausência e do sofrimento. E esse desejo foi benéfico e, sobretudo, foi mobilizador, na medida em que nos permitiu acreditar e, acreditando, suportar e persistir.

Mas a vida não é uma transmissão televisiva que seguirá dentro de momentos, nem possui, tão-pouco, essa versatilidade, mais moderna e digital, de pausar e voltar atrás. E, por isso, a realidade não parou na suspensão artificial em que encaixámos as nossas horas. E mais importante ainda, também nós próprios não nos suspendemos, pairando num tempo de vazio.

Não nos suspendemos porque este foi, queiramos ou não admiti-lo, um período de duplo confronto: o do confronto óbvio com o poder invisível de um vírus; e o do confronto interno, connosco mesmos e com a nossa realidade.

E nesse confronto interno talvez tenhamos concluído que nos apropriámos, em excesso, dessa realidade. Que a tomámos, de modo superlativo, como garantida. Que julgámos, em demasia, que a humildade não passava de um atributo dos fracos e o medo de uma marca dos cobardes. Que estávamos, enfim, a perder em humanidade e nessa noção mais fundamental do que é ser pessoa: a absoluta imprescindibilidade do outro.

Sabemos que o tal confronto óbvio com o vírus vai deixar marcas, profundas e duradouras, na organização social, na economia e, até, na geopolítica.

A incógnita consiste, por isso, na profundidade das marcas deixadas por esse outro confronto solitário, connosco próprios. Na profundidade e na durabilidade das mudanças no que somos, no que julgamos ser e no que queremos ser. Porque para cada um de nós haverá sempre um a.c. (antes da covid) e um d.c. (depois da covid).

E como nada seguirá igual dentro de momentos, temos pela frente um enorme desafio: o de sermos capazes de viver uma nova vida, nesta vida que é a nossa. (Re)Comecemos pois!…

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