Ainda está por fazer o que mais importa na vida

Valorizar o que fazemos e o nosso papel na sociedade. Valorizar a paz, a bondade e o humor com humanidade. Valorizar cada sorriso e valorizar o quão importante é fazer alguém feliz.

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LUSA/NUNO VEIGA

Estávamos bem a viver o filme da nossa vida, e fizeram-nos crer ou quisemos acreditar que pegávamos no comando e fazíamos um pause. “São só 14 dias”, dizia-se por aí, fazendo alusão ao tempo oficial de quarentena preventiva após um contacto com um caso confirmado. Mas não foram 14 dias, nem uma quarentena de dias, e provavelmente ao dia 400 ainda estaremos a conviver com este pedaço de genes que nos atormenta a vida. E de repente percebemos que ao carregar no play a nossa vida não está onde estava.

Ainda nem percebemos bem o que é que perdemos. Alguns perderam a paciência para estar em casa, outros perderam quase a sanidade mental com a gestão do teletrabalho, da telescola dos filhos e mais um mar de telechatices por resolver, outros perderam a conta ao número de pessoas que viram morrer, muitos perderam os abraços e os afectos das pessoas de quem mais gostam, demasiados perderam o emprego, muitos perderam o tecto e perderam a capacidade de dar de comer à sua família, enquanto outros perderam as vidas sozinhos nos hospitais, longe dos seus, directos para baixo da terra sem a devida homenagem às suas memórias.

Entre o pause e o play, o filme das nossas vidas mudou. O luto do que ficou para trás existirá sempre nas nossas memórias como parte de nós, mas só há uma forma de ultrapassar: aceitar o que perdemos e olhar para o que ainda temos. Já vi lutos em todas as partes do mundo. Não há fórmulas mágicas, mas fui-me apercebendo que tão importante como valorizar a vida é aceitar a morte. É um desafio por vezes quase perturbador em que nos perdemos aos rodopios em filosofias entre duas premissas que parecem ser contraditórias, mas que precisamos que sejam complementares: valorizar a vida e aceitar a morte. Valorizar o que temos e aceitar o que perdemos.

Aceitar que há um novo normal. Aceitar que os acontecimentos defraudaram as nossas expectativas. Aceitar que nada sabemos e nada controlamos. Aceitar tudo o que perdemos e valorizar o que nos faz felizes. Valorizar a vida com verdade. Valorizar a humildade. Valorizar o que fazemos e o nosso papel na sociedade. Valorizar a paz, a bondade e o humor com humanidade. Valorizar cada sorriso e valorizar o quão importante é fazer alguém feliz.

O mundo mudou e nós com ele. Enganaram-nos ou enganamo-nos a nós próprios. Não foi um pause, foi uma mudança de filme. E neste novo filme das nossas vidas, tantos foram os paradigmas que nos fugiram das mãos que podemos perder o rumo se nos agarrarmos ao passado, enquanto a Terra continua a girar, o sol a nascer e a vida passar.

Há muitas pessoas que mudam a vida após uma “estadia” nos Cuidados Intensivos. Por vezes, estar perto da morte faz-nos ver a vida. Porque tudo o que nós somos e tudo o que sabemos vem de uma perspectiva. Mas a realidade é um mar infinito de perspectivas em que contar a história de cada segundo não cabe em todos os livros do mundo.

Pela primeira vez na história do mundo ocidental fomos obrigados a sair da nossa zona de conforto. Tememos pela nossa vida e dos nossos, e ninguém gosta de viver com medo. Da forma como eu vejo a vida existem duas hipóteses: ou muramos a nossa zona de conforto, ou aumentamo-la e alargamo-la para que caibam lá muitos e cada vez mais. E agora que percebemos quanta falta nos fazem os afectos, teremos de decidir pela escolha que torna a nossa vida mais bonita.

Tudo o que mais importa na nossa vida ainda está por fazer.

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