Dos efeitos inesperados dos infortúnios
Com o epicentro da pandemia a norte de Ovar, toda a região Norte soube mobilizar-se de modo exemplar. E o que se ganhou em experiência pessoal, seja em sentimentos ou em ações solidárias, bem como num maior sentido identitário e de pertença a uma comunidade única, perdurará e ajudará a consolidar a mítica ideia de “naçom”, na região!
De como a existência e o agravamento do epicentro da pandemia a Norte do país veio despertar o que de melhor existe no DNA da Região
Com a declaração do estado de emergência, em 18 de março, e a imposição de medidas restritivas de confinamento social, assistiu-se paradoxalmente a um maior crescimento dos casos de covid-19 a Norte do país, tornando esta região no epicentro da epidemia em Portugal. As possíveis razões para o facto foram já apresentadas noutro local, estando relacionadas com o tipo de tecido socioeconómico predominante nos concelhos que têm uma concentração acrescida de pequenas e médias empresas de manufatura e a falta de condições adequadas de proteção individual dos seus trabalhadores.
Esta situação de alarme nestes concelhos do Norte rapidamente suscitou iniciativas de solidariedade na sociedade civil, de auto-preservação individual e institucional, próprias de quem sente que se agir com rapidez e eficácia correrá um risco menor do que se ficar à espera do desejado, mas, muitas vezes, tardio socorro por parte de quem, para além de estar longe dos locais com necessidades específicas, está igualmente desprevenido e impreparado para lidar com estes desafios. E, se inicialmente as forças mais vivas da sociedade nortenha reagiram de forma generosa e espontânea, seguidamente fizeram-no de maneira mais articulada, interligando iniciativas, de modo a adquirirem uma maior eficácia e eficiência na sua ação.
De como, quando a alma não é pequena, dos grandes desafios e provações nascem também os grandes empenhos e os grandes engenhos
Deste modo, com o epicentro da pandemia a norte de Ovar, o Norte soube mobilizar-se de modo exemplar, envolvendo autarcas e empresários, cidadãos anónimos e profissionais de saúde voluntários, estudantes, investigadores e docentes, de modo a protegerem tanto os hospitais e centros de saúde do SNS, como os lares de idosos e as entidades prestadoras de cuidados de saúde privadas. Reinventando linhas de produção, apostando no ensino à distância, convocando, com entusiasmo, reservas de vontades e energias e, sobretudo, contrapondo a recomendações desadequadas e a faltas de equipamentos, soluções credíveis e pragmáticas. Com o objetivo único de combater, de forma eficaz e integrada, uma batalha que parecia desde logo perdida por ser tão imprevista e adversa.
É claro que todo este sacrifício e adaptação de estruturas e procedimentos teve elevados custos económicos e financeiros para além de evidentes sacrifícios pessoais. Mas o que se ganhou em experiência pessoal, seja em sentimentos ou em ações solidárias, bem como num maior sentido identitário e de pertença a uma comunidade única, perdurará e ajudará a consolidar a mítica ideia de “naçom”, na região!
Dos bons exemplos que queremos convosco partilhar para que sirvam de boas práticas e possam singelamente homenagear tantos outros que me não chegaram ao conhecimento
Na verdade, não faltam excelentes exemplos, concretos e pioneiros, destas iniciativas cívicas e institucionais, alicerçadas numa desinteressada mas rigorosa ação e numa genuína vontade de ajudar. Desde estudantes e anónimos que se ofereceram para trabalhar em hospitais de campanha e lares de idosos, a compras feitas em longínquos países através de representações locais de grupos industriais nortenhos. Desde o estudo e implementação de novos produtos (e.g. testes de diagnóstico e ventiladores mecânicos) por investigadores e empresários, até ao seguimento voluntário de doentes nos seus domicílios. De doações em géneros ou monetárias, de investigação académica não financiada em covid-19, até a tentativas de obtenção de dados anonimizados para fins de investigação independente. Desde iniciativas para o ensino de não especialistas em cuidados intensivos no uso de ventiladores, a opiniões de especialistas que habitualmente não se expõem nos media, até a colaborações, normalmente raras, envolvendo simultaneamente académicos, investigadores e empresários, ou mesmo até a reconversão de produtos de pequenas e médias empresas (e.g. na fabricação e certificação de máscaras, viseiras e outros equipamentos de proteção individual). Ou ainda na realização de testes sistemáticos em lares de idosos ou em modo de “drive-through”, de modo a dar reposta a necessidades locais e a grupos laborais específicos.
Ou seja, as gentes da região Norte mobilizaram-se para dar contributos imprescindíveis ao combate desta pandemia, aproveitando aqui para nomear, entre tantos outros exemplos igualmente meritórios, apenas uns poucos e singulares de entre os principais casos de liderança por área de atividade, tais como o da Câmara Municipal do Porto, entre as autarquias, o do Centro Hospitalar Universitário de S. João, nos cuidados de saúde do SNS, o da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, na academia, o do Futebol Clube do Porto, no universo desportivo, ou o da Sonae, no mundo empresarial.
Da importância de um líder estar na frente a apontar caminhos e não apenas a seguir conselhos que lhe vão sendo sugeridos por parte de quem é suposto liderarem
Neste contexto, se não é difícil encontrarmos bons exemplos de líderes a norte do Vouga – muitos deles anónimos, mas sempre abnegados e generosos nas suas façanhas diárias –, já haverá mais dificuldade em os encontrar entre as elites dirigentes, opinativas ou publicadas, bem mais próximas dos centros de decisão do país, mas muito mais longínquas dos seus centros de ações concretas e criativas. De facto, não raras vezes, estes últimos estiveram sobretudo atentos aos clamores ou ruídos que lhes chegavam, sejam os dos pais que já não levavam os filhos às escolas, os dos reitores e diretores de faculdades que já tinham iniciado mecanismos de ensino não presencial de modo a não exporem os seus estudantes a riscos desnecessários, os de pessoas que voluntariamente tinham já entrado em períodos de teletrabalho e auto-confinamento, ou os de empresários que fechavam transitoriamente os seus negócios porque queriam ajudar a achatar a infame curva epidémica, de modo a conseguirem o tempo extra que foi vital para o nosso SNS se poder preparar e não vir a colapsar quando os portugueses dele mais o necessitassem. E, neste contexto, o sucesso destas iniciativas cívicas e organizacionais no Norte foi grande, pois apesar de alguns dos seus concelhos terem níveis de infetados mais de quatro vezes a média do restante país, não se assistiu, no Porto ou em qualquer lugar do Norte de Portugal, ao terror de Madrid ou ao descalabro de Bérgamo ou Bréscia.
Da importância do exemplo dos comandantes e do caráter e competências necessárias à afirmação dos verdadeiros líderes
Na verdade, em todas os combates, as vidas são sempre ganhas (ou perdidas) nas zonas de guerra e não nos gabinetes, por vezes cheios de generais distantes ou desconhecedores dos locais onde se travam as principais batalhas. E os comandantes que mais sucesso têm são sempre aqueles que acompanham de perto os seus soldados ou, no mínimo, os incentivam e os ouvem, no terreno e no calor da luta, até porque é lá que ganham (ou perdem) o respeito das suas tropas. Com efeito, os verdadeiros líderes não são necessariamente aqueles que se limitam a apresentar resultados, números ou medidas a serem implementadas por outros. Por mais enérgicos que pareçam ou por mais simpatias que possam até granjear no público que os ouve. Como já Camões nos advertia, são os fracos reis que fazem fracas as fortes gentes. Mas acrescentaria agora que também as fortes gentes se agigantam nos momentos de infortúnio. E isso faz certamente toda a diferença. Seja em fase de estado de emergência, seja em fase de recuperação económica.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico