Covid-19: Presidente de El Salvador usa pandemia para fazer guerra aos gangs

Nayib Bukele deu ordem para que os membros de gangs fossem fechados nas suas celas, emparedando-as com placas de metal, e autorizou os militares e polícias a terem o dedo leve no gatilho nas ruas de El Salvador.

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Os presos foram depois fechados, com placas de metal nas portas, em celas sobrelotadas Reuters/El Salvador Presidency
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Sentados em fila e com os joelhos ao peito, colados uns aos outros apenas com a roupa interior, centenas de reclusos foram mantidos nos pátios de pelo menos cinco prisões de El Salvador enquanto as suas celas eram revistadas. Sobrelotadas e sem condições de higiene, as prisões ameaçam tornar-se num verdadeiro inferno com a pandemia de covid-19 e o estado de emergência, do qual o Presidente salvadorenho, Nayib Bukele, parece decidido a aproveitar-se para combater os gangs

A ordem para pôr os presos nos pátios, aumentando o risco de contágio, veio directamente do Presidente Bukele no âmbito de uma política de “emergência máxima”, depois de ter recebido relatórios das secretas a alertar para o aumento abrupto dos homicídios nas ruas. “O Presidente Nayib Bukele ordenou aos centros prisionais que detivessem os membros de gangs por 24 horas, enquanto as operações policiais decorriam. Faz parte das medidas de emergência postas em prática por causa do recente aumento de homicídios”, disse no Twitter a Secretaria de Imprensa da Presidência, mostrando fotos dos reclusos.

Uma vez revistadas as sobrelotadas celas, os reclusos voltaram a ocupá-las e por lá se mantêm sem qualquer contacto com o exterior, numa tentativa de romper com a cadeia hierárquica dos gangs. Poucos têm máscaras e a falta de higienização é a regra. As portas das celas foram emparedadas com grandes placas de metal. Lá fora, nas ruas, polícia e militares têm liberdade para puxar o gatilho contra os membros dos gangs

“A partir de agora, todas as celas de gangs vão manter-se fechadas. Não vão poder ver para lá da cela. Isto vai impedir-vos de fazerem sinais para o corredor. Vão ficar no escuro, com os vossos amigos de outros gangs”, disse, no sábado, o Presidente. As autoridades acreditam que os líderes de gangues usam os reclusos prestes a serem libertados como mensageiros, mesmo quando estão em celas diferentes. 

“Temos o dever de assegurar que El Salvador não se transforma noutra ditadura. A única maneira de parar isto é com uma forte reacção da comunidade internacional”, denunciou Jose Miguel Vivanco, director executivo da Human Rights Watch. “Os presos foram sentenciados à perda de liberdade e o Estado tem de tomar medidas”, continuou Vivanco, referindo-se ao risco de a pandemia entrar nas prisões e infectar milhares de reclusos. 

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A Human Rights Watch disse que os presos foram privados da sua liberdade, não à morte por coronavírus Reuters

Quando soaram os alertas sobre o avanço do coronavírus no mundo, mas especialmente na América Latina, região apontada como uma das mais frágeis, os gangs acordaram uma paz temporária entre si, para permitir às autoridades focarem-se no combate à doença. Chegaram mesmo a prometer, em vídeos publicados nas redes sociais, apoiar as medidas de isolamento social decretadas pelo Governo e têm-nas imposto nas ruas, vigiando e interrogando quem sai de casa sem razão plausível. E castigam, torturando, quem viola a quarentena. 

O país tem, até ao momento, 345 casos confirmados de covid-19 e oito mortos, de acordo com a contagem da norte-americana Universidade de Johns Hopkins. 

Gangs em dificuldades

Os militares também foram destacados para as ruas e, diz o jornal salvadorenho El Faro, há relatos de os membros dos gangs estarem com dificuldades económicas – deixaram de matar a soldo e de cobrar impostos aos pequenos empresários, por estes terem empresas e lojas fechadas – e de serem “caçados” pelos militares. Uma das grandes promessas do Presidente é o combate sem quartel ao crime organizado no país e tudo indica estar a usar o estado de emergência para cumprir o prometido. 

“Deixem-me ser claro de que não os vamos tolerar, vamos capturá-los e aplicar o peso total da lei. Estes terroristas apenas têm duas opções: a prisão ou a morte”, disse o ministro da Segurança salvadorenho, Rogelio Rivas. 

“Durante o destacamento dos militares e da polícia, para garantirem a quarentena, os membros de gangs começaram a queixar-se sobre um aumento dos ataques, humilhações e espancamentos contra si e os seus familiares. Há mais agentes da polícia nas ruas e há o sentimento de a violência policial estar a aumentar nas zonas dos gangs”, disse um comissário da polícia, sob anonimato, ao El Faro. E, alertou, a situação está a tornar-se um barril de pólvora. 

El Salvador é considerado um dos países mais violentos do mundo e o número de assassínios vinha a diminuir deste o início da pandemia, fruto da paz inicial entre os gangs. No entanto, nos últimos dias assistiu-se a um aumento abrupto de mortes: pelo menos 22 pessoas foram mortas, com as autoridades sem conseguirem explicar as razões. Ou seja, se é por os gangs estarem a aproveitar para expandir o seu território, se há civis a serem assassinados por motivos políticos ou se as mortes foram uma consequência do desrespeitar da quarentena.

O gang Sureños rejeitou qualquer responsabilidade e disse que partidos políticos ou o Governo poderiam estar por trás das mortes, enquanto o Mara Salvatrucha (MS-13) se relegou ao silêncio, com um responsável prisional a apontar-lhe o dedo.

A retaliação do Governo tem ainda uma outra medida que pode incendiar as prisões de El Salvador. Grande parte dos detidos são membros de gangs e as autoridades separavam-nos, desde 2004, em celas e até prisões diferentes, para evitar uma guerra entre quatro paredes. Mas agora tudo mudou: o Presidente deu ordens aos estabelecimentos prisionais para os misturarem, na esperança, argumenta, de virem a encontrar um acordo de paz que trave os assassinatos para lá das prisões. 

“Acabou-se hoje com as celas do mesmo gang, misturámos todos os grupos terroristas na mesma cela”, publicou nas redes sociais um funcionário prisional, citado pelo espanhol El Periódico

As medidas já ameaçam transformar, por si só, as prisões num palco de guerra e que esta extravase os seus muros – os gangs tendem a retaliar nas ruas –, mas, em contexto de pandemia, o risco é ainda maior. A comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, caracterizou as condições das prisões na América Latina como “deploráveis” e os reclusos têm feito da protecção contra a pandemia a sua principal exigência. E, se não for ouvida, é de esperar motins. 

A América Latina tem uma população prisional na ordem dos 1,5 milhões de pessoas e muitos países, entre os quais o Chile e a Colômbia, já optaram por libertar alguns milhares para diminuir a sobrelotação. O México aprovou na semana passada uma lei no mesmo sentido, enquanto o Brasil nada fez até ao momento. Mas o caso mais extremo é mesmo El Salvador, ignorando todas as recomendações da Organização Mundial de Saúde. 

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