Para tudo o que nos assusta, há um nada que nos acalma
Testemunho do técnico de radiologia Altino Cunha: “Aguardamos a chegada de uma criança de três anos, suspeita de ter covid-19, acompanhada pela mãe e por um assistente operacional devidamente equipado.”
Quando passas a viver num cenário de pandemia e trabalhas num hospital do interior, (re)começas a fazer comparações por dois motivos: por tudo e por nada. Por tudo o que não tens, seja bom ou mau, e porque nada será igual, para o bem e para o mal.
São quase duas da manhã de uma noite que se pretende calma e tranquila, mas que, na verdade, nunca se sabe nem como começa nem com termina, e pelo meio pode ou não “apertar”. Toca o telefone e inevitavelmente o pensamento é: “Mais um doente suspeito.” Do outro lado da linha, num português filtrado pela máscara, ouve-se: “É uma suspeita e vai da pediatria!”
Pediatria?! Uma criança?! Nem raciocinei que a pediatria vê doentes até aos 18 anos; na verdade, mesmo os 18 são uma idade muito tenra e muito distante daquelas que nos dizem serem as idades de risco. Dirigi-me ao computador de trabalho para confirmar dados do ou da doente e verifiquei: “Feminino, três anos!” Antes de mais, partilhei a informação com o colega de turno. Noto, naquela fracção de segundo de silêncio, que a reacção foi a mesma: desalento!
Uma doente de três anos obriga a que nos equipemos os dois. A teoria do doente independente e autónomo que vai colaborar no exame cai um pouco por terra e conversámos entre os dois quem passa a “linha de segurança” que separa a consola de trabalho do posicionamento do doente. Após conversa e argumentação (com base em premissas que não vou esmiuçar aqui), eu equipo-me para a linha da frente e o meu colega para a retaguarda.
Aguardamos a chegada de uma criança de três anos, suspeita de ter covid-19, acompanhada pela mãe e por um assistente operacional devidamente equipado.
Naqueles segundos tudo nos passa pela cabeça: o quase certo choque e medo que assolará a criança quando nos vir, sobretudo a mim, todos equipados literalmente até aos olhos, num branco quase total — imagino que seja o tom de pele da criança quando me vir assim vestido. Não é fácil contornar o facto de não conseguir mostrar um sorriso e quase não conseguir partilhar um olhar terno. Penso para mim: “Árdua tarefa terás tu!...”
Mas desengane-se o mais céptico dos profetas da desgraça. Já depois das duas da manhã, de uma noite que se desejava tranquila, irrompe pelo corredor um ser humano de três anos apenas, que, ao entrar no Serviço de Radiologia, cumprimenta todos os presentes e começa a cantar (com direito a coreografia) o famoso Baby shark.
Apesar de nunca ter gostado desta canção (sobretudo porque fica no ouvido durante demasiado tempo!), adivinho o sorriso debaixo da máscara daquela pequena princesa e partilho o meu melhor sorriso com ela, sabendo que ela não me verá sorrir e copio os movimentos daquela coreografia que tantas vezes me fez mostrar um ar de aborrecido. Ouço as gargalhadas e o entusiasmo do meu colega. A árdua tarefa não teve nada de árduo nem de tarefa. Foi, isso sim, um momento inesquecível.
Exame realizado, validação feita. Doente pode regressar ao serviço de origem. Cantoria continua e só é interrompida por um “adeus”. Tarefa concluída com sucesso e esperança.
Depois de confirmada a limpeza e desinfecção da sala e equipamento, voltamos à sala de descanso. Quase 3h, escuro e silêncio. Perdão, silêncio, não. Eu e o meu colega estamos a trautear o Baby shark. Rimos imenso, novamente.
Obrigado a ti, pequena criatura de três anos, por nos fazeres acreditar que, num pequeno hospital do interior, o tudo e o nada são relativos. Que, para tudo o que nos assusta, há um nada que nos acalma.