Júlio Couto, o alegre humanista que contou o Porto homenageando sempre as suas gentes
Economista, homem do teatro, rádio e televisão e um dos grandes conhecedores e investigadores da história do Porto. Com Germano Silva e Helder Pacheco, formava “os três mosqueteiros” da cidade. Júlio Couto (1935-2020) morreu esta sexta-feira, vítima de covid-19
Tinha o ofício das contas, mas o coração foi sempre das letras – e da arte. Sem nunca deixar a economia e a contabilidade, que lhe valiam o salário no fim do mês, Júlio Couto encheu a vida com tudo o resto: o teatro, a rádio, a televisão, os jornais, a poesia e muitos livros. E o Porto, sempre, cidade onde nasceu e à qual se dedicou, escrevendo várias obras sobre ele. Era um dos grandes investigadores da sua História e histórias – e jamais as contou apartado das suas gentes. Morreu esta sexta-feira, 24 de Abril, aos 85 anos, vítima de covid-19.
Foi numa ilha em Miguel Bombarda, hoje rua de galerias de arte, que Júlio Couto nasceu, a 12 de Março de 1935. Era “o mais velho de sete irmãos vivos” a habitar na ilha de minúsculas casas com “paredes finas” e sabia que o destino não lhe guardaria facilidades. Fez a instrução primária e rápido ganhou o vício dos livros. Mas aos 14 anos teve de fazer-se trabalhador: começou a acarretar sacos de cimento e a cumpria a tarefa de moço de recados num escritório na Rua dos Bacalhoeiros. O ordenado, conta no livro O Riso ao Virar da Esquina – memória de uma vida portuense, era curto e ia directamente para a mãe.
Nesse escritório na Ribeira, havia muitas máquinas de escrever – e Júlio Couto cobiçava-as, contou numa longa entrevista, em 2013, à revista A Página da Educação. Chegava à mesma hora da empregada de limpeza, antes do seu expediente, e ficava a escrever nelas. Assim aprendeu a mexer em teclados – e a pensar num futuro longe dali. Retomaria os estudos – com a ajuda financeira de um tio que vivia no Rio de Janeiro – à noite. E assim foi ganhando responsabilidades: “A determinada altura já era guarda-livros, depois técnico de contas e depois economista”, conta na mesma entrevista.
Ainda menino, pelos seis anos, Júlio Couto já fazia teatro. Mais tarde, acabaria por entrar no Teatro Experimental do Porto e chegou a dirigir a secção de teatro do FCPorto, no tempo de Pinto de Magalhães como presidente, e a promover espectáculos no Lar do Comércio, instituição onde viveu nos últimos anos e onde morreu esta sexta-feira. Júlio Couto tanto actuava como escrevia. Fez rádio – e o programa humorístico A Voz dos Ridículos –, esteve na RTP Porto, colaborou com jornais e revistas, sendo fundador da extinta Paisagem, foi pioneiro no Porto Canal, onde teve um programa sobre o Porto e outro sobre o fado vadio na cidade, colaborou com dezenas de colectividades portuenses. E escreveu vários livros, sendo o mais popular O Porto em 7 Dias, publicado nos anos 90, um roteiro de visita à Invicta numa semana, como se antecipasse o boom turístico que a cidade haveria de ter.
“Os três mosqueteiros”
Foi nos anos 80 que Joel Cleto, ainda estudante de arqueologia, se cruzou pela primeira vez com Júlio Couto. “Nesses anos nós chamávamos os três mosqueteiros ao Helder Pacheco, ao Germano Silva e ao Júlio Couto. Era gente de fora da academia, mas uma referência numa outra perspectiva da História. Amigos, todos muito diferentes, mas com a mesma paixão pela cidade”, aponta. Achando que “a Historia e património não são só monumentos e sítios”, Júlio Couto cumpriu um “papel social importantíssimo”.
Júlio Couto - Medalha de Grau Ouro de Mérito Cultural pela Câmara do Porto, que já nesta segunda-feira aprovou, por proposta do PS, um voto de pesar pela sua morte - conhecia a cidade como poucos. Calcorreava as suas ruas, sozinho ou em passeios com portuenses e turistas. E em cada recanto encontrava um “cunho pessoal”, recorda Joel Cleto: “Fazer uma visita à cidade com ele era sempre conhecer as suas histórias também”.
Em casa, tinha uma biblioteca de fazer inveja. Quem o conta é Helder Pacheco, historiador, professor e cronista, amigo de longa data de Júlio Couto. “Comprava tudo o que tinha a ver com história do país e do Porto. Tinha uma profunda cultura humanística e literária e uma das melhores bibliotecas que conheci na vida”, afirma, contando também que durante muitos anos Júlio Couto fez leituras para criação de aúdio-livros para cegos.
Helder Pacheco conheceu-o “há uns 40 anos”, na Universidade Popular do Porto, quando esta ainda funcionava no Clube de Campismo da cidade. “Apareceu no curso com a mulher, a Maria José. A partir daí começamos a conviver e tornamo-nos grandes amigos”, recorda. Todos os meses, durante muitos anos, faziam jantares – ora na casa de um, ora na casa de outro. “Era um contador de histórias, um animador. Enchia uma casa.”
“Um segundo Alberto Pimentel”
O seu olhar sobre o Porto, diz Helder Pacheco, era o de uma “tripeiro de base” e associava “uma profunda cultura humanística e histórica a uma visão popular”. O “enorme talento literário” dispersou-se em várias obras importantes sobre a cidade, muitas escritas por encomenda, como monografias de algumas freguesias do Porto. Não fosse a obrigação de trabalho como economista, acredita Helder Pacheco, e teria tido uma “brilhante carreira literária”.”Acredito que poderia ter sido um segundo Alberto Pimentel.”
Ainda criança a aprender as primeiras letras, Júlio Couto sentava-se nas mesmas cadeiras de Germano Silva, numa escola primária junto ao Palácio de Cristal, a meio caminho entre a casa de ambos. “Desde miúdo ligou-se às artes e coleccionava livros. Li uma parte das obras de Emílio Salgari porque ele me emprestou. Na adolescência, andou a tentar fazer ilusionismo, andava com moedas e cartas a fazer habilidades”, lembra o também investigador da História do Porto. Os dois ainda subiram juntos ao palco do “velho teatro Gil Vicente, no Palácio de Cristal”.
Mas se algo definia Júlio Couto, era a geografia: “Era sobretudo um homem do Porto. Nasceu e viveu sempre cá.” Esse contacto próximo com os tripeiros, junta ainda o jornalista, colocou-o numa posição privilegiada de contador de histórias no meio da História. “Era um excepcional contador. Tinha muito sentido de humor. E estava sempre disponível”, aponta. “Acompanhamo-nos sempre, foi o único amigo da instrução primaria que nunca perdi.”
Apesar de partilharem o mesmo ofício, “três mosqueteiros”, como Joel Cleto lhes chama, nunca entraram em colisão. Pelo contrário. Helder Pacheco recorda em tom saudoso essa “sólida amizade”. Os três foram por vários anos júri de presépios e das cascatas de São João – uma das grandes paixões de Júlio Couto. “Servir o Porto e amar o Porto: era o que nos unia. Éramos todos diferentes, mas estávamos todos de acordo quando era preciso.”
Em tempos de “individualismo feroz onde vale tudo menos tirar olhos”, um acordo tácito existia entre eles (e preserva-se entre Germano e Helder): “Quando precisava de apoio servia-me da biblioteca dele. E quando ele precisava de outras coisas vinha aqui. Nas duas casas tínhamos o saco das trocas. Tudo o que descobria que lhe podia ser útil – fotocópias, recortes de jornais, livros – guardava. E no jantar seguinte trocávamos.”
Também na bola, a cumplicidade era total. Portistas “aferroados”, fizeram muitas vezes o caminho até às Antas, de azul e branco dos pés à cabeça, e vibraram juntos no Mónaco, em 2003, na final da Supertaça Europeia. “Ele é a prova, para quem precisa dela, que se pode ser um intelectual e também homem do povo e da bola”, provoca Helder Pacheco.
Tradicionalista com olhos no futuro
Sobre o Porto de hoje, diz o amigo, Júlio Couto tinha “uma perspectiva aberta e dinâmica”: “Defendendo a identidade e as suas tradições, a visão que tinha era de mudança. Não queria que a cidade ficasse confinada e fixada ao passado. Era um tradicionalista fazendo a ponte com o futuro.” A degradação física da urbe nos últimos anos entristecia-o. E a revitalização agradava-lhe. “A perspectiva que tinha era a de que a cidade tinha de dar a volta.”
Passou a vida a “servir causas”, continua o cronista portuense, com uma “extrema generosidade”. Opção que talvez o tenha impedido de fazer uma obra mais vasta – mas isso nunca foi a sua prioridade. “Punha o seu talento ao serviço do bem comum. Nunca viveu folgadamente justamente porque nunca cobrava no trabalho em colectividades, por exemplo, fazia essa dádiva.”
Germano Silva confirma. “Estava sempre disponível. Nunca o ouvi dizer que não.” Por cumprir, lembra, terá ficado pelo menos um sonho, também ele prova desse amor entranhado pela cidade: a encenação de uma peça de teatro no Douro que as pessoas pudessem assistir das suas janelas.