Há vida debaixo do SARS-CoV-2 (revisitando Karl Popper)
Vivemos numa sociedade aberta, mas ela também se fecha, e pode pôr-se, mesmo que com passinhos de lã, a caminho do fechamento, se não nos batermos pelo policromatismo noticioso, reflexivo, opinativo. Puxemos um pouco a manta, olhemos para debaixo dela, há lá vida, há lá temas também importantes, há coisas a acontecer, e há outras que deveriam ou poderiam ir acontecendo.
Longe de mim querer negar a eminência da crise (ou das crises) gerada pelo maldito vírus. Faço-lhe a maior das vénias, à reverendíssima criatura – e também às criações a respeito e por causa dela. Longe de mim, também, desvalorizar o que isto tem aproveitado a outras reflexões, a pensamentos maiores, a temas nobres e até de civilização. É verdade que, aqui e ali, algo se escreveu e disse, e escreve e diz, sobre tudo isso – ou muito disso, pelo menos. Todavia – oh, “todavia”, essa torta espinha dorsal da natureza humana –, temo que não seja suficiente, e temo, sobretudo, que não seja suficientemente visto, retido, valorizado, sob o esmagamento da overdose noticiosa e opinativa (mea culpa também, culpa de todos) sobre os temas purpurados do momento, suas excelências o vírus e o seu estrondoso magistério. Metem respeito, geram deferência, dominam tudo, como se nada mais houvesse. Mas há, e já nem digo que há vida para além do vírus, embora haja, o que digo é mais simples, é menos ambicioso, é mais iminente – é que continua a haver vida sob o vírus.
E onde está ela? Onde a podemos encontrar? Bem e cabalmente noticiada, pensada, refletida, gerida, preparada, acautelada? E onde, mais ainda, de modo suficientemente audível, para que os recetores, todos nós, possamos saber, pensar, agir? E viver, já agora, ainda que dentro das “cercas” do possível. Popper escreveu A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, principalmente contra a deferência, a deferência para com os “grandes homens”, para com o historicismo, para com a dominância monocromática do pensamento, que conduz quase sempre, ou abre caminho, à tentação ou à realidade totalitária. E escreveu também, em certa medida – relembre-se, já agora –, alertando para a contaminação excessiva entre os planos da Ciência e da Política.
Eu, passe a ousadia, revisito Popper a respeito da deferência para com os “temas únicos” ou “muito dominantes”; neste tempo, contra a monocromática inundação “covidiana”. Tudo o mais parece, muitas vezes, esquecido, colocado em suspenso, abafado ou mesmo enterrado sob uma repetição ad nauseam do mesmo, e do mesmo, e do mesmo. Não nego a importância do tema, mas, caramba, não é preciso, e nem é nada saudável, estar sempre a bater na mesma tecla. Há mais, e também é preciso evidenciar isso, mesmo que o pathos viral e crítico seduza tanto e se imponha tanto, por boas mas também por menos boas razões.
Vivemos numa sociedade aberta, mas ela também se fecha, e pode pôr-se, mesmo que com passinhos de lã, a caminho do fechamento, se não nos batermos pelo policromatismo noticioso, reflexivo, opinativo. Puxemos um pouco a manta, olhemos para debaixo dela, há lá vida, há lá temas também importantes, há coisas a acontecer, e há outras que deveriam ou poderiam ir acontecendo. Sufocamos, deferentemente, debaixo da púrpura do eminente “tema único”, ouvimos quase só variações sobre o mesmo. Isto estará bem para certa música e, mesmo assim, só com o génio de um Bach e o virtuosismo das Goldberg. No mais, pode ser um sub-reptício inimigo da abertura que tanto trabalho deu a conquistar. Ouvindo ou lendo quase só e sempre o mesmo, podemos começar a pensar sempre e só o/e no mesmo. E essa “monotonia tonal” abre espaço a que possamos ser cada vez mais permissivos, ou até simpáticos, com “certas e determinadas coisas”. É olhar para a História. Digo eu.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico