Pandemia força milhões de muçulmanos a celebrarem o Ramadão entre quatro paredes

Medidas de contenção da covid-19 cancelam tradições e rituais milenares em todo o mundo e obrigam fiéis a viverem o mês sagrado em isolamento. “Momento triste na história do islão”, assume líder religioso.

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Um trabalhador desinfecta e limpa a kaaba, em Meca, na Arábia Saudita Reuters

Mesquitas encerradas, peregrinações canceladas, orações públicas e ajuntamentos proibidos, jejuns em isolamento e celebrações nocturnas comedidas. São medidas como estas, decretadas por governos nacionais e autoridades religiosas em todo o mundo, em nome da contenção do novo coronavírus, que prometem converter o mês sagrado do islão numa experiência muito diferente do habitual para os cerca de 1,8 mil milhões de muçulmanos espalhados pelo globo.

O desafio será enorme, mas exequível, para a maioria dos fiéis e estão em marcha iniciativas criativas para quem quiser socializar depois de o sol se pôr, recorrendo à tecnologia. Há, no entanto, preocupação com os mais pobres e com os que dependem largamente da caridade típica desta época para obterem alimento e ajuda financeira. Em alguns países receia-se ainda o impacto negativo de posições menos cooperantes de líderes religiosos mais conservadores nas medidas de distanciamento e isolamento social.

O Ramadão corresponde ao nono mês do calendário muçulmano, inicia-se esta quinta-feira, e tem a duração de 29 ou 30 dias, dependendo da fase da lua. É um período de oração e reflexão para os crentes, marcado por longos períodos de jejum durante o dia e refeições comunitárias à noite – iftar. Termina com uma grande celebração, o Eid al-Fitr, agendada este ano para o final do dia 23 de Maio.

Por causa da crise sanitária, a principal mensagem do poder político, particularmente em Estados de maioria islâmica, é para que as pessoas jejuem, rezem e celebrem o Ramadão em casa, reduzindo a participação em encontros e festividades nocturnas apenas ao agregado familiar. Ao mesmo tempo, mercados e negócios de rua terão de refrear a sua actividade – alguns foram mesmo proibidos – para se evitarem ajuntamentos.

“Os nossos corações serão torturados pela dor neste mês sagrado do Ramadão. É um momento muito triste da história do Islão”, lamentou, citado pelo Guardian, sheikh Omar al-Kiswami, imã e director da mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, terceiro lugar mais santo para o islão, depois de Meca e Medina, que estará encerrado durante todo o mês.

“Não me recordo de alguma vez isto ter acontecido. A literatura antiga, os textos históricos e os arquivos mostram que, apesar das guerras e dos desastres naturais, os muçulmanos sempre se juntaram durante o Ramadão e cumpriram juntos os seus rituais religiosos”, disse à Al-Jazeera Mohd Faizal Musa, investigador no Instituto do Mundo e da Civilização Malaia, na Malásia. “Desta vez, porém, enfrentamos um inimigo diferente, que consegue ser implacável e invisível”.

Restrições e confinamento

A Arábia Saudita foi um dos primeiros países a decretar medidas de confinamento extraordinárias para o mês sagrado. O grande mufti Abdul Aziz bin Abdullah al-Sheikh determinou que as orações devem ser feitas em casa, tal como as celebrações do Eid, pelo que a maioria das mesquitas do país estará encerrada ao público.

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A ver as fases da Lua na mesquita Al Musariin, em Jacarta Willy Kurniawan/REUTERS

O Rei Salman decretou ainda a suspensão de vistos para os fiéis que pretendiam fazer peregrinações em Meca e Medina, anunciou que as cerimónias especiais nas mesquitas das duas cidades sagradas não terão assistência e suspendeu os preparativos para o hajj – a mais importante peregrinação muçulmana, agendada para o mês de Julho.

No Irão – um dos países mais afectados pela pandemia, com 87 mil infectados e mais de 5000 mortos –, também foram encerradas mesquitas. Tanto o Supremo Líder da República Islâmica, o ayatollah Ali Khamenei, como o Presidente, Hassan Rouhani, desdobraram-se em apelos para que as pessoas não visitem as cidades santas e evitem ajuntamentos ao cair do sol.

Os governos de Israel, Palestina e Jordânia também decretaram o encerramento de mesquitas e locais de culto, e na Malásia, Brunei e Singapura foram proibidos os bazares especiais da época.

O Egipto não vai organizar os tradicionais postos de distribuição de comida pelos mais pobres, a Indonésia proibiu o mudik – a deslocação de dezenas de milhões de pessoas dentro do país, para celebrarem o Eid junto dos seus familiares – e a Turquia impôs uma quarentena obrigatória nos primeiros quatro dias do Ramadão, entre outras restrições.

“Nunca pensei que um pequeno vírus podia impedir-nos de celebrar o Ramadão. Está a fazer mais de um milhar de milhão de muçulmanos reféns em todo o mundo”, confessa ao Guardian um comerciante da cidade palestiniana de Ramallah.

Desobediência preocupa

Apesar de a maioria dos líderes religiosos islâmicos e fiéis estarem em sintonia com as autoridades nacionais sobre as restrições às celebrações, há alguns casos que merecem preocupação, particularmente os que envolvem a acção de ordens religiosas mais conservadoras.

Nas regiões sírias controladas por grupos islamistas há relatos de violações das medidas de confinamento, por imãs mais fervorosos, e no Afeganistão há líderes fundamentalistas, como Mujib Rahman Ansari, a defenderem que a morte por covid-19 é uma forma de martírio como tantas outras.

No Paquistão, o primeiro-ministro Imran Khan teve mesmo de recuar na ordem de proibição de orações nas mesquitas com mais de cinco pessoas. A decisão originou confrontos entre crentes e a polícia e levou 50 líderes religiosos importantes a unirem-se contra Khan. “Devemos virar-nos para Deus e rezar pelo fim deste coronavírus”, justificou um dos imãs, citado pelo Washington Post.

Depois de avanços e recuos, o chefe do Governo paquistanês acabou por se comprometer com as autoridades religiosas, acabando com o limite de fiéis nas mesquitas durante o Ramadão, mas impondo uma distância mínima de dois metros entre cada um, a utilização de máscaras por toda a gente e a proibição de se abrirem as portas a crianças e a idosos.

“Vamos impor distanciamento social, mas não acredito que fosse necessário. O coronavírus não vai afectar as pessoas nas mesquitas. É a casa de Deus”, afirmou Maulvi Haider Zaman, líder religioso de Islamabad, citado pelo diário norte-americano. 

Reflexões e iniciativas

Para muitos muçulmanos, um Ramadão diferente não significa uma celebração desvirtuada ou menos abençoada, bem pelo contrário. Em declarações à Al-Jazeera, a líder da organização Sisters in Islam, da Malásia, Rozana Isa, diz que as restrições deste ano podem ser uma boa oportunidade para muitos fiéis reflectirem sobre os princípios da “modéstia” e da “humildade” que norteiam esta época.

“Toda a percepção sobre o desperdício de alimentos e de recursos, e a forma como podemos canalizá-los para quem mais precisa, é algo que nos põe a pensar, enquanto muçulmanos”, defende a activista, apelando à criatividade de quem quer ajudar.

Nos Emirados Árabes Unidos foram criadas equipas especiais para entregarem refeições aos mais pobres – durante a noite e fora das mesquitas – e há organizações não-governamentais em todo o mundo a recorrerem a serviços online de entrega de comida, para ajudarem quem precisa.

Também no campo da socialização pós-jejum há ideias originais. O Conselho Muçulmano do Reino Unido desafiou os fiéis a celebrarem a iftar nas redes sociais e já há mais de 1400 inscrições no Ramadan Tent Project, que tem um site que organiza jantares virtuais, através do Zoom, para os muçulmanos que vivem sozinhos ou que estão mais isolados.

Há ainda quem coloque tudo em perspectiva e conclua que há provações maiores. Como Abu Ibrahim, um refugiado sírio de 32 anos, que falou com o Guardian e que recordou como passou o Ramadão de 2011 em Deraa, na Síria, sob ataques aéreos, ou o de 2012, junto à fronteira com a Jordânia, escondido dos soldados do exército sírio.

“Púnhamos a comida na mesa ao som de bombardeamentos. Tínhamos medo da morte, medo que os nossos familiares morressem”, conta Ibrahim. “O coronavírus não me preocupa. Agora estou na minha casa, com a minha família. Estamos a salvo”.

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