Viver com medo de morrer não é viver

O que nos rebenta o coração é ver os doentes que morrem sozinhos nos hospitais onde, com o preço das nossas lágrimas, colocamos a família por videochamada para um adeus final.

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LUSA/JOSÉ COELHO

Nunca um tema em discussão me foi tão próximo e nunca tive tantas dúvidas e dificuldades em saber o que dizer. Estou há um mês a trabalhar directamente com doentes covid-19, sou médico intensivista no Hospital de Matosinhos e vou tendo também uma perspectiva global dos cuidados intensivos do Grande Porto, nomeadamente do Hospital de São João, que me formou.

No entanto, não consigo despir-me de dez anos de experiência de medicina humanitária, quase sempre em cenário de guerra, a trabalhar nalgumas da maiores catástrofes dos últimos tempos e, como tal, tentarei transcrever as diferentes fases por que passei neste mês, em termos de gestão de emoções.

1. Revolta e injustiça
Ver que o mundo estava prestes a “parar” foi para mim extremamente doloroso, pois nunca “parou” pela guerra da Síria, do Congo ou do Iémen, e nunca “parou” pelos milhões de crianças que morrem à fome e de doenças facilmente tratáveis.

A revolta que causou em mim foi tão grande que prometi a mim mesmo que, depois de dar o máximo para ajudar os meus e o meu país, nunca mais voltarei a exercer medicina em Portugal pois parece-me demasiado injusto esta desproporção de atenções. Sem querer ser teimoso intelectualmente, sempre acreditei que a cura irá matar mais do que a doença (já em 2020 a fome aumentará de 135 para 265 milhões de pessoas), mas espero do fundo do coração estar errado.

2. A fase emocional 
Quando me apercebi de que a minha irmã tinha medo que eu me aproximasse dos meus pais porque, no início de Março, passei por vários aeroportos, caí em lágrimas, pois sabia que ia estar cara a cara com os doentes de covid-19 mais graves durante muitos meses. E fugir a esta responsabilidade não seria sequer uma opção.

Não preciso de perguntar a ninguém, à minha volta no hospital, porque sei que todos nós já choramos. Profissionais com muita experiência a lidar com a vida e com a morte sofreram o que nunca imaginaram. A ideia de ser um de nós, deitado numa das camas dos cuidados intensivos, passou a ter uma forma muito real e assustadora, assim como a possibilidade de termos de decidir quem vamos tratar e quem vamos deixar morrer é destrutiva.

Alguns separam-se dos filhos pequenos para poder trabalhar, com medo de “matar” alguém da família; outros continuam a trabalhar bem de perto com a mesma doença que atirou para os cuidados intensivos um dos seus familiares que está com a vida por um fio. É muito duro gerir estas emoções.

3. Conviver com a doença
Mal arrancamos para esta batalha tão dura, cerca de um terço da minha equipa médica teve resultado positivo no teste e foi para casa.

A dureza de trabalhar com os fatos, as máscaras e com a visão embaciada pelas viseiras torna tudo muito mais difícil. Separar o circuito (covid, não-covid) da urgência e enfermaria, e duplicar os cuidados intensivos, é extremamente exigente do ponto de vista físico e emocional. O cansaço acumula-se.

A doença em si é muito difícil de compreender, principalmente nos que infelizmente nos chegam aos cuidados intensivos. Resumindo um mundo de saberes científicos: ninguém sabe como se trata, só sabemos que demora muito tempo. Já acordei à noite com ansiedade a pensar nas estratégias de ventilação. Percebemos também que a doença que “só mata os velhinhos” já atirou para os cuidados intensivos no meu hospital doentes com 29 e 33 anos. 

Reduzir a conversa a uma contagem de ventiladores é a mais pura das estupidezes. Os cuidados intensivos fazem-se de recursos humanos de qualidade, só isso é que salva vidas. E na minha opinião, convicto que não é o tempo para lutas sindicais, tornou-se ainda mais óbvio que os enfermeiros são preciosos e mereciam muito mais respeito da sociedade.

Quando não estou no hospital, estou em casa a trabalhar: a estudar, a ler novos protocolos que saem ao minuto, responder a infinitos emails e a ensinar outros médicos que têm sido preciosos a reforçar à pressa as equipas dos cuidados intensivos. Tenho visto em todos os profissionais de saúde uma enorme coragem, uma solidariedade sem precedentes e uma coesão entre as equipas que é profundamente inspiradora.

O que nos rebenta o coração é ver os doentes que morrem sozinhos nos hospitais onde, com o preço das nossas lágrimas, colocamos a família por videochamada para um adeus final.

4. Consequência sociais
Cada dia que acordo e saio de casa para trabalhar sinto que sou um felizardo. A cada dia que passa, irrita-me mais a expressão “linha da frente”, quando o colapso da economia vai causar níveis de desemprego e fome sem precedentes, que matará muita gente, ainda que de uma forma silenciosa e sem ninguém para os contar.

Assim como ninguém sabe quantos já morreram por consultas e cirurgias adiadas e muito mais ainda pelo empobrecimento das ONG que protegem os mais frágeis em Portugal e no mundo. É difícil dizer quantos desempregados valem uma vida, mas o sofrimento humano extremo de muitos milhares em Portugal e muitos milhões pelo mundo tem de entrar na equação das nossas decisões.

5. E agora, o que fazer?
Acredito que a discussão tem de ser multidisciplinar, que a medicina e a ciência, apesar de serem pedras basilares da conversa, não podem ter a arrogância de pensar que a dominam. A economia assim como a democracia de opinião possível, e é preciso, ainda, acrescentar à conversa a filosofia dos comportamentos de como a sociedade quer viver, enquanto espera por uma vacina que ninguém sabe se vem, nem quando vem.

Eu não gostaria que as pessoas da minha família, em idades de maior risco, ficassem em casa sem viver para preservar a sua vida. Eu não gostaria de viver sem a cultura que nos alimenta a alma e a humanidade que temos em comum. Eu não gostaria de viver sem afectos que me fazem a pessoa que sou hoje. Viver com medo de morrer não é viver.

Acredito também que o grande sofrimento de cada indivíduo, mais do que da pobreza, vem da desigualdade. Teremos de tornar a sociedade mais justa e canalizar os esforços de cada um para uma solidariedade à proporção do maior desafio colectivo das nossas vidas.

Por último, passado o pânico, o foco tem de ser o reforço do Serviço Nacional de Saúde, pois está mais do que provado que a única forma de termos orgulho em sermos portugueses é garantir acesso à saúde igual para todos. Falo com alguma experiência, o espírito de missão é uma chama que não tem preço, mas desvanece-se com o tempo. É preciso valorizar as pessoas que valem vidas e proteger os mais frágeis. Este é o maior desafio das nossas vidas. Mostremos carácter. 

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