Há uma máquina que substitui os pulmões de dez doentes no São João. “Queremos salvar toda a gente”
O São João, no Porto, converteu-se num hospital “covid”. Há doentes em estado muito crítico nos cuidados intensivos, a lutar pela vida, mas a maior parte tem apenas sintomas ligeiros e está “internada” em casa. Os médicos acreditam que o pior já terá passado.
Há um doente que luta pela vida há um mês no Hospital de São João. Está ligado a uma máquina que substitui os pulmões que o novo coronavírus quase destruiu. Partilha uma sala com mais uma dezena de homens e mulheres na unidade de cuidados intensivos do piso seis do gigantesco hospital do Porto. O ambiente parece saído de um filme: a maior parte dos pacientes está em coma induzido mas alguns estão acordados, de olhos bem abertos. À sua volta, dezenas de médicos, de enfermeiros, de auxiliares, equipados com batas, viseiras, luvas, toucas, afadigam-se 24 sobre 24 horas. Colocam cateteres, administram sedativos, analgésicos, relaxantes musculares, antibióticos, soros, vigiam sinais vitais nos monitores, trocam fraldas, limpam tudo com persistência.
São doentes que não se encaixam no perfil dos grupos de maior risco de vida. O mais novo tem apenas 33 anos, o mais velho 64. Aparentemente, nenhum sofria de patologias prévias. Não respondem à ventilação invasiva. Estão, à excepção de um, ligados a um aparelho que aspira o sangue e o oxigena antes de o devolver ao organismo. O ECMO (sigla em inglês) é a última esperança para estes homens e mulheres cujos pulmões falharam. Há quem chame salva-vidas ao pequeno aparelho de onde saem e entram largos tubos repletos de sangue. Substitui os pulmões, dá-lhes tempo para recuperar das graves lesões provocadas pelo novo coronavírus. E é exactamente de tempo que precisam. Uma mulher de 47 anos teve alta entretanto e recupera numa enfermaria, e um homem de 49 anos acaba de ser “extubado”, palavra que na gíria dos cuidados intensivos é habitualmente sinónimo de vitória.
“Quando os ventiladores não funcionam, colocamos o ECMO. O pulmão é um órgão com enorme capacidade de recuperação”, descreve Roberto Roncon, o médico que coordena o centro de referência desta técnica e que se habituou a ver homens e mulheres que pareciam condenados à morte a sobreviverem quase sem sequelas. “Estes doentes são um desafio. Nós queremos salvar toda a gente”, declara a enfermeira-chefe, Patrícia Pais, 38 anos de idade, 15 de experiência em cuidados intensivos. “Alguns estão conscientes, conseguem comer sozinhos e até falam por videochamada com os familiares. O mais duro é não poderem estar acompanhados. É injusto.” A emoção transparece nos olhos cuidadosamente maquilhados de Patrícia. É a única vaidade a que se pode dar ao luxo — não pode usar adornos, não pode ter as unhas pintadas.
Entrar e sair da sala, vestir e despir o desconfortável equipamento de protecção — a bata e as luvas, a touca que não deixa um cabelo à vista, os óculos, as viseiras, as protecções de calçado — é uma experiência morosa feita de concentração, de rituais que nunca podem falhar. “Há circuitos, há protocolos, há fluxogramas”, enumera a enfermeira. À saída, o equipamento é cuidadosamente despido e vai para o lixo. As mãos são desinfectadas inúmeras vezes ao longo do dia. O ruído produzido pelos ventiladores e pelos equipamentos de perfusão é constante. “Perdemos a noção dos dias”, diz Patrícia, que não consegue ficar longe dos filhos de três anos, gémeos, prefere correr o risco e vai para casa ao fim do turno, ao contrário de alguns colegas que não vêem a família há mais de um mês.
O serviço de medicina intensiva desdobrou-se em dois sectores, expandiu-se até às 99 camas. No piso 1 ficaram os “doentes não-covid”. Parte dos pisos seis, cinco e oito está reservada para os “covid”. Com as imagens do caos vivido em Itália e em Espanha na cabeça, José Artur Paiva, director da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva, confessa que sentiu uma “ligeira preocupação” antes da chegada do avião que trouxe da China os primeiros ventiladores para reforçar os hospitais. Nessa altura respirou de alívio. “Ainda temos 12 camas livres completamente equipadas.” Nem o mais ínfimo pormenor foi descurado: os doentes são triados logo à entrada, há um intensivista em permanência na urgência, os fluxos estão perfeitamente definidos. “Já tratámos 92 doentes ‘covid’ críticos. Quase 50 saíram para enfermarias. Morreram oito”, contabiliza o médico.
Doentes não urgentes estão a regressar
De longe, o hospital com o maior número de doentes com covid-19 do país, o São João reinventou-se em poucos dias para responder rapidamente à doença que está a paralisar e a intrigar o mundo. Em 28 de Fevereiro já tinha um gabinete de crise, em 12 de Março suspendeu as consultas e cirurgias não urgentes, em 7 de Abril proibiu a entrada de pessoas sem máscara cirúrgica.
No serviço de doenças infecciosas, onde tudo começou — com o isolamento dos primeiros casos suspeitos logo no início de Março —, ainda há pacientes em cuidados intensivos, e outros mantêm-se sozinhos em quartos de pressão negativa (que não deixa sair o ar). Alguns são idosos, mas quando se espreita pelo vidro de um dos quartos vê-se um “menino”, como é conhecido o doente mais novo, um frágil adolescente que contraiu uma infecção hospitalar. Desde o início, e para afrouxar a pressão sobre o serviço, optou-se por “internar” em casa a maior parte dos pacientes — e quase 1500 já foram seguidos à distância por uma equipa de médicos que não precisa de estetoscópios para diagnosticar um eventual agravamento da infecção.
O serviço também se reconverteu. Foi-se apoderando de outras áreas do hospital, ocupou a enfermaria de ginecologia, depois invadiu uma parte da Medicina B e outra da Medicina A. “As primeiras semanas foram muito duras. Não houve ninguém que trabalhasse menos de 12 horas por dia”, recorda a infecciologista Margarida Tavares, ex-directora clínica do hospital. As equipas foram crescendo, reforçadas com médicos de outras especialidades, medicina interna, pneumologia, imunoalergologia, cirurgia. “Foi um esforço verdadeiramente multidisciplinar.” Aqui não há especialistas, há médicos, ponto final. “Vou ter saudades disto, é realmente fabuloso”, suspira Margarida.“Apesar de estarmos aqui à beira do vulcão [Espanha], está tudo a correr bem e isto vai melhorar”, acredita o director do serviço, António Sarmento. Mesmo assim, avisa: “Isto foi uma lição. Temos de estar cientes da nossa fragilidade.”
À entrada do hospital, o bulício é bem menor do que o habitual, mas já começa a ser perceptível um regresso, ainda que ligeiro, à normalidade. Com medo do contágio, muitos dos doentes que antes procuravam a urgência (e eram 480 por dia, em média) eclipsaram-se, tolhidos pelo medo do contágio. “Houve uma diminuição muito significativa que começa a perder-se. Já estão a reaparecer os verdes [pouco urgentes]”, observa Cristina Marujo, a directora do serviço, sem tirar os olhos do monitor que actualiza hora a hora o movimento do hospital. Desde o início da pandemia, já passaram pelo São João quase dois mil doentes, mas apenas 154 permaneciam internados na sexta-feira e 161 já tinham sido dados como recuperados — um deles com cem anos.
Cá fora, no hospital de campanha montado com tendas do INEM, mesmo em frente do serviço de urgência, médicos, enfermeiros e técnicos de análises aguardam por casos suspeitos de infecção. É o final da manhã e as tendas estão quase vazias, tal como os 34 contentores alinhados ao lado e destinados à observação de doentes moderados. O pior já parece ter passado. “Chegámos a ter 300 doentes por dia, agora são cerca de 100”, calcula Nélson Pereira, chefe do serviço de urgência, especialista em medicina de catástrofe.
A sala para onde iam antes da epidemia os doentes laranja, os muito urgentes, foi adaptada, criou-se uma barreira física na ilha, ao meio, por onde circulam agora médicos e enfermeiros apressados. As equipas são rendidas de três em três horas, seria insuportável aguentar muito mais tempo dentro dos sufocantes fatos de protecção e máscaras que têm de vestir para evitar o risco de contágio. Deitados em macas, alguns doentes respiram com muita dificuldade. Sentados em cadeirões há homens e mulheres sozinhos, com ar desamparado. Parecem perdidos. Estão assustados.
Mas esta crise acabou por ter um efeito colateral positivo. Acelerou a mudança da obsoleta lógica de funcionamento do serviço. Um enorme aparelho de TAC (tomografia axial computorizada) doado por uma empresa foi colocado ali mesmo ao lado. “Tínhamos um TAC do outro lado do hospital, o que nos obrigava a atravessar o edifício. Agora, tudo o que precisamos está cá dentro. Antes, o doente ia ao médico, agora é o médico que vem ao doente”, ilustra Nélson Pereira com satisfação.
Tudo isto é “o novo normal”, remata Roberto Roncon. Não tem sido pressão a mais? “Nem pensar. Um médico nasceu para isto. Mal de nós se não estivéssemos à altura.”