Isto não tem a ver com democracia, tem a ver com celebração
Não aceito que um ritual seja a verdadeira linha vermelha que separa os democratas dos outros
Que ninguém tenha dúvidas: este estado de confinamento beneficia os introvertidos (como eu). Tinha de chegar o dia em que tirava alguma vantagem disto de ser reservada, de fazer uma certa cerimónia ou de não ser capaz de tratar toda a gente como se fosse um velho amigo. Ainda hoje a minha mãe não sabe como é que aquela menina tímida e calada, sempre fechada noutro mundo qualquer, acabou por ser mesmo jornalista (como sempre ameaçou).
Isto para dizer que certos traços de personalidade ajudam a passar melhor o tempo, nesta fase. Mas nem por isso foi mais fácil ver o meu filho de 11 anos celebrar o seu aniversário em casa, com os avós e tios em videochamada, e a ter de adiar para data indefinida a festa com o resto da família e a festa com os amigos. Não foi fácil, mas aconteceu. E, apesar de não o sabermos na altura, foi em pleno pico da epidemia.
Não estou arrependida de ter cumprido as regras. Um mês e dois dias depois (quem é que não os está a contar?) de ter adoptado esta versão de trabalho à distância, protegida e protectora, não posso dizer que tudo sejam rosas, mas teria sido pior se tivesse havido um surto de covid-19 na redacção e se vários de nós tivéssemos adoecido, ficando impossibilitados de desempenhar o nosso papel, garantindo o direito à informação, à liberdade de expressão e à democracia. Pergunto-me por que razão não pensam também assim os responsáveis políticos que insistem em levar a festa do 25 de Abril para as bancadas e galerias da Assembleia da República, num ano em que tantas celebrações têm sido canceladas.
“Há uma vontade da democracia e há uma grande maioria no Parlamento que quer celebrar o 25 de Abril — e vamos celebrá-lo”, disse Ferro Rodrigues, como se os únicos portugueses com vontade de democracia fossem aqueles deputados que votaram a favor da sessão comemorativa.
Não são. E não aceito que um ritual seja transformado na verdadeira linha vermelha que separa os democratas dos outros. Não aceito que discordar de uma festa faça de mim uma hipócrita ou pessoa de mau gosto, como diria Manuel Alegre, sem respeito pela democracia. Tão pouco define a minha ideologia.
Independentemente de quem me acompanha nesta matéria, creio que ela é daquelas que levam os portugueses que estão em casa a sentirem distância em relação às instituições. Como se houvesse umas tradições, as de São Bento, obrigatórias de cumprir (mesmo em situação de absoluta excepção como é um estado de emergência) e outras que não tivessem o mesmo valor. Como se a liberdade de uns tivesse mais valor do que a liberdade de outros.
Meus senhores, para mim, não se trata de suspender a democracia (aliás, Parlamento e Governo continuam a escrutinar e a legislar), trata-se de suspender uma festa, reinventá-la.
A 25 de Abril, estaremos praticamente a meio do terceiro estado de emergência. Nesse dia, 130 deputados e convidados estarão na Assembleia da República para cumprir um ritual que está, em si mesmo, diminuído e reduzido a uma série de discursos de seis minutos, que serão lidos uns a seguir aos outros. Portugal poderá seguir o ritual pela televisão, como faria se as mensagens fossem gravadas em vídeo. Abril é mais do povo - será sempre mais do povo e da Avenida da Liberdade - do que de São Bento.
Nada disto tem a ver com democracia. Tem a ver com celebração.