Entre a incerteza do regresso e o querer partir: assim estão os Erasmus no mundo da covid-19
Viram, em questão de semanas, a liberdade que significa ser jovem e viver noutro país ser substituída pelo confinamento motivado pelo novo coronavírus. Ainda assim, e apesar das consequências a nível académico, nenhum dos jovens entrevistados pelo P3 mostra sinais de arrependimento da decisão que tomou de participar no programa Erasmus. E os que pretendem seguir-lhes os passos, já em Setembro, também não equacionam uma mudança de planos no imediato.
Quando, a 7 de Fevereiro, Adriana Pereira pôs um pé no voo que a levaria até Praga para uma muito ansiada experiência de Erasmus, o SARS-CoV-2 era ainda uma “realidade longínqua” da qual “não se falava muito”. À data, a Europa contabilizava apenas 31 casos de infecção e a China era o epicentro do surto do novo coronavírus. Assim se explica que, antes da partida, nenhuma recomendação ou medida preventiva tenha sido transmitida à jovem de 22 anos, estudante de Bioengenharia na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP).
À chegada, a “normalidade” que se vivia na capital checa permitiu-lhe começar o estágio curricular nos laboratórios da University of Chemistry and Technology “sem percalços”. Adriana conseguiu, inclusive, tirar partido da geografia central da capital checa – um dos factores que pesaram na eleição da cidade –, viajando para “Budapeste e outras cidades mais próximas”. Os planos que delineou para a aventura, que se previa durar cinco meses, cumpriam-se. Até que tudo mudou “do dia para noite”.
“Num momento estávamos todos bem, tudo normal, até que recebi um email do reitor a informar que a universidade ia fechar”, recorda ao telefone com o P3. À decisão de encerrar todos os estabelecimentos de ensino, desde creches ao ensino superior, juntar-se-ia, dois dias depois, a declaração de estado de emergência. Iniciou-se, assim, um fim-de-semana em que, perante a possibilidade de medidas mais restritivas serem decretadas e sem que ninguém conseguisse apontar uma data para a retoma das aulas, o regresso a Portugal foi ponderado, com todos os prós e contras a serem devidamente pesados. “Foi uma decisão obviamente incentivada pela família, que, a certa altura, disse: ‘Compra o bilhete para o próximo voo, traz só uma mochila e vem.’”
Visto inicialmente como uma medida temporária, algo para durar “15 dias, até que a situação acalmasse”, o regresso a Portugal, concretizado a 13 de Março, ganhava contornos de incerteza à medida que os dias passavam e o número de infectados aumentava de forma exponencial na Europa. Adriana começou, assim, a equacionar todas as possibilidades que lhe permitissem acabar o semestre de estudo sem que a pandemia de covid-19 representasse um fim para a experiência de mobilidade em que tinha depositado tantas expectativas.
A solução, articulada entre a FEUP, a orientadora de estágio de Adriana em Praga e a própria, passou por continuar ao abrigo do Erasmus ainda que o trabalho de investigação que estava a desenvolver em Praga tenha sido substituído por um “relatório correspondente ao mês e uma semana” em que permaneceu na República Checa. “Descrevo o que fiz, os resultados que obtive até à data da partida e faço o ‘estado da arte’ da nossa investigação”, explica. No final, a nota atribuída a estes trabalhos será reconhecida e creditada em Portugal.
Da parte das duas faculdades a que está ligada, a estudante de Bioengenharia assegura que a postura foi de total “flexibilização”, tanto na componente académica, como no que diz respeito às bolsas de estudo atribuídas aos estudantes que se encontram a estudar fora, ao abrigo do programa Erasmus. “Foi-nos dito que iria ser feita uma avaliação caso a caso para que ninguém saísse prejudicado.” Os esforços das instituições de ensino vão no sentido de impedir que uma experiência que é conhecida por representar uma mais-valia no currículo dos estudantes não se transforme em dores de cabeça acrescidas para estes e para as famílias.
De acordo com Marcos Teixeira, presidente da Federação Académica do Porto (FAP), a procura de “alternativas”, quer para os estudantes cuja componente lectiva se resumia a aulas, quer para os que se encontravam em modalidade de estágio, tem sido uma constante, à semelhança do que tem sido feito em Portugal com os estudantes nacionais. Do que tem conhecimento e dos relatos que chegaram à FAP, não há registo de estudantes que tivessem intenção de voltar e não o tenham conseguido fazer até ao dia de hoje. De facto, os estudantes que optaram por regressar dos países de acolhimento representam “a maioria”, apesar de existirem excepções.
É o caso de Filipa Campos, Eva Salgado e Carolina Cunha que, à semelhança de Adriana Pereira, são estudantes de Bioengenharia. Na licenciatura com mestrado integrado da FEUP, fazer Erasmus é “quase como uma regra”, refere Filipa, que confirma a “cultura de mobilidade” que se vive no curso. Daí que com a aproximação do segundo semestre do quarto ano, encarado como aquele em que vão finalmente “pôr as mãos na massa”, as três jovens tenham começado a averiguar qual seria a cidade com melhores condições para as receber. Após alguma ponderação e pesquisa sobre os laboratórios existentes, a escolha acabou por recair sobre Paris.
Também elas tiveram oportunidade de iniciar os estágios a que se propuseram, ainda que por pouco tempo. Das três, Eva Salgado foi a que chegou mais tarde à capital francesa, a 28 de Fevereiro. Desfrutou, por isso, durante duas semanas, do que a cidade e a experiência de estudar no estrangeiro tinham para lhe oferecer. “Acabei por só estar duas semanas fora de casa. Os laboratórios [em Paris] estão fechados desde 16 de Março”, relata.
Durante a semana que se seguiu, as jovens falavam “todos os dias” sobre a decisão que sabiam ter de tomar, optando, no final, por permanecer em Paris. Pesou o facto de viverem num apartamento exclusivamente para as três (“a segurança ajuda porque se nos comprometemos a não sair, sabemos que isso não vai acontecer”), a certeza de que teriam de se isolar da família caso escolhessem voltar, o encerramento do aeroporto situado a dez minutos de casa – o que as obrigaria a recorrer a uma alternativa mais longe e, naturalmente, com mais riscos associados. E, finalmente, a esperança, que ainda alimentam, de assim conseguirem regressar mais fácil e rapidamente aos estágios que tiveram forçosamente de interromper.
Olhando para o que foram os últimos dois meses, mas sem nunca perder de vista o que os próximos três ainda podem oferecer, nenhuma das três jovens mostra arrependimento da decisão que tomou de participar no programa Erasmus. “Podemos ter sido muito prejudicadas no aspecto académico, já que esta era a última oportunidade de fazermos um grande trabalho prático antes de acabarmos o curso, mas, no que diz respeito a desenrascar, a aguentar pressão, acaba por ser bom. Vai acabar por nos fortalecer”, reflecte Filipa. A amiga e colega de casa Eva concorda, dizendo mesmo que “arriscava de novo”, nem que seja porque, quando tudo acabar, poderá sempre dizer que saiu de Paris “uma melhor cozinheira”.
Decisões adiadas para a partida
É com o mesmo espírito que Ana Margarida Jesus, com 22 anos, encara a sua experiência de mobilidade internacional, com data de início prevista para Setembro. A actual crise sanitária não fez com que a estudante de Medicina na Universidade de Coimbra equacionasse uma mudança de planos, pelo menos para já. “A vontade de ir continua igual ou até maior, porque é algo que quero muito.”
Heraclião, capital da ilha de Creta, será a cidade a que chamará casa durante quatro meses. Ainda assim, todos os cenários estão em cima da mesa para Ana, que não esquece as responsabilidades acrescidas que representa ser estudante de Medicina numa fase já adiantada da formação: “Podem precisar da minha ajuda cá e tenho que ter isso em conta.” Atira, por isso, uma decisão para os meses de Julho e Agosto. “Se estivermos a meio ou perante a possibilidade de um pico, não vou. A minha universidade cá não abre e a deles também não, portanto não teria a hipótese de fazer alguma coisa, não teria equivalências”, reflecte.
Em stand-by está igualmente a decisão de Diogo Dias, aluno do mestrado integrado de Engenharia Electrónica Industrial e Computadores na Universidade do Minho (UM). Também ele adiou a deliberação final sobre a ida para Maribor, na Eslovénia, “para a altura da partida”, quando o futuro estiver menos repleto de incertezas ou dúvidas. Com apenas mais um ano de formação no ensino superior (e com o segundo semestre deste dedicado em exclusivo à dissertação), estudar fora ao abrigo do programa Erasmus só é uma opção viável no semestre que se inicia em Setembro, daí que um adiamento esteja fora de hipótese. “Se não for no primeiro semestre do próximo ano, não vou de todo”, assume.
A postura de Ana Margarida e de Diogo confirma uma tendência já atestada pela consultora britânica Quacquarelli Symonds. De acordo com os resultados do estudo The Impact of the Coronavirus on Global Higher Education, que inclui um questionário feito a mais de 14 mil estudantes europeus, 90% dos inquiridos manifestam vontade de manter os planos de estudar fora do seu país de origem, apesar da actual situação pandémica. A hipótese de adiar a experiência por um ano é considerada por 46% dos estudantes, enquanto apenas 17% planeiam mudar o destino de mobilidade. No que diz respeito aos estudantes portugueses, 49% assumem que a crise sanitária está a ter impacto nas suas intenções futuras de estudar no estrangeiro.
Para já, as candidaturas decorrem com normalidade e nos “prazos estipulados”, ainda que, no caso de Diogo, os emails que lhe chegam por parte da UM ressalvem, em nota final, “a possibilidade de o [programa] Erasmus ser cancelado caso as condições actuais se mantenham”. Um cenário que, segundo Joana Leite, não está “de todo” a ser equacionado. Para a presidente da Erasmus Student Network Portugal (ESN Portugal), apesar de “a mobilidade física estar suspensa”, assim como a “sua preparação”, o que inclui “oficialização da mobilidade e de toda a papelada envolvida”, tanto a ESN como a Comissão Europeia estão “a trabalhar” para que o programa “se adapte às circunstâncias”.
É com base na ideia de que “até lá as coisas vão melhorar” que Rita Sousa, aluna de Gestão na Universidade Católica do Porto, continua a estruturar aquele que será o seu “plano de estudo” na Universidade de Zagreb. Depois de ter recebido um parecer positivo à candidatura inicial, aventurou-se ainda na procura de casa, até que a covid-19 veio pôr um travão no entusiasmo. Ainda assim, não equaciona uma mudança de rota definitiva, pelo menos quando a partida está ainda tão longe e o caminho tão incerto: “Não vale a pena estarmos a alterar planos por algo que não sabemos se vai acontecer ou não, por isso mantenho os mesmos planos.”