Com o tempo, o “Erasmus passou a representar um mundo quase ideal, sem fronteiras”
Inês e Catarina fizeram Erasmus com vinte anos de diferença. Uma em 1995 e a outra em 2016. Moldou a forma como vivem e sentem a Europa, mas tiveram experiências distintas. Esta quinta-feira assinala-se o Dia da Europa.
Aos 20 anos, Inês Espada Vieira — hoje professora na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica de Lisboa — foi para Hamburgo ao abrigo do programa Erasmus. Era 1995, estava inscrita em Estudos Portugueses, em Lisboa, e tinha pela frente um ano na cidade alemã. Partiu numa altura em que o programa ainda era recente (foi criado em 1987), incentivada pelo “pai, que foi um europeísta militante, e por uma professora da altura que actualmente é a reitora da Universidade”. “Foram duas pessoas que deram um empurrão muito concreto” a essa participação, recorda.
Ficou alojada na Europahaus (a Casa da Europa, em português), uma residência onde partilhava casa com dois alemães, um luxemburguês, um espanhol, um britânico e um holandês. E apesar de já terem decorrido mais de duas décadas desde que participou no programa, os detalhes desse ano estão bem vivos na sua memória. “Esse passado não ficou lá atrás. Na minha vida continuo a ter marcas desse ano”, explica. “Por exemplo, este ano vou passar férias com amigos que conheci nesse ano. Também foi lá que conheci o meu marido, que é espanhol, e temos três filhos. Há uma espécie de fantasma de padrinho deles que é o próprio programa Erasmus.”
A professora e o marido estão longe de serem os únicos pais juntos pelo Erasmus. Numa avaliação ao programa feita em 2014, a Comissão Europeia estimou que tinham nascido, até essa data, um milhão de bebés de casais que se conheceram no intercâmbio.
O programa Erasmus arrancou em 1987. Logo nesse ano, 25 alunos portugueses beneficiaram da experiência de estudar durante um semestre noutro país europeu. Os destinos escolhidos: sobretudo França e Reino Unido. Algo que, com o passar dos anos, viria a mudar. Entretanto, os países favoritos passaram a ser Espanha, Itália e Polónia. O número de alunos portugueses que participam anualmente também está muito longe dos primórdios do Erasmus em Portugal que hoje é muito mais do que um programa de intercâmbio. Só em 2017 quase sete mil universitários estudaram fora.
Sem surpresas, as universidades do Porto, Lisboa e Coimbra — que também são as que têm mais alunos — são aquelas onde mais estudantes participam no programa.
Voltando à experiência de Inês, a participação foi muito além do desenvolvimento de relações interpessoais. Nesse tempo também aproveitou para tirar proveito da centralidade de um país como a Alemanha. “Portugal é, geograficamente, uma periferia. Se apanhar o autocarro demoro oito horas a chegar a Madrid. Apanhando um autocarro em Hamburgo estávamos em vários países — França, Holanda, Dinamarca — nessas mesmas horas”, lembra.
Ao nível académico, também “foi muito interessante”. A vida na Universidade de Hamburgo, onde Inês Espada Vieira estudou em meados da década de 1990, “era muito diferente, mas muito activa”.
Ir para a Alemanha em Erasmus quando estava a formar-se em Estudos Portugueses pode parecer estranho, mas a professora assegura que correu bem. “A universidade tinha uma pessoa à frente do departamento de Lusitanística, a professora Maria de Fátima Brauer Figueiredo, que é madrinha de uma geração de Erasmus e de uma relação entre Portugal e a Alemanha que foi muito importante e pioneira”, nota.
“Eu fui estudar Português porque isso era possível. Havia uma boa oferta de disciplinas em português e tantas outras, como Cultura Hebraica e Árabe, Literatura Brasileira ou Línguas Estrangeiras” sobre as quais também se podia debruçar.
O programa mudou
Independentemente da disciplina escolhida, todas eram leccionadas em alemão, diz a professora da Universidade Católica. Hoje o inglês acaba por dominar. “Tenho a sensação de que a mobilidade é maior, mas que um dos espíritos do Erasmus, que era submergir na cultura do destino, se perdeu um pouco. Estive na Alemanha e a língua veicular era o alemão”, recorda. “Quando conheci o meu marido, que é espanhol, falávamos em alemão.”
Outra mudança que surgiu com o crescimento do programa é a quantidade de tempo que os jovens passam fora do país de origem. Há mais gente a participar, “mas a maioria das pessoas vai por menos tempo”. “Um semestre, na verdade, não é muito tempo. No semestre de Inverno, por exemplo, as pessoas vão daqui em Outubro (porque no resto da Europa as aulas só começam nessa altura), depois vêm cá a meio do semestre, no Natal já cá estão outra vez e depois regressam em Janeiro para fazer exames”, detalha. Por isso, o conselho da professora é sempre o mesmo: “Na medida do possível, uma experiência Erasmus deve ter um ano. Permite terem saudades de casa e adaptarem-se [a essa vida].”
Passar um ano inteiro fora era o plano de Catarina Neves. A jovem universitária ainda estuda na Universidade do Porto e em 2016 partiu para a sua primeira experiência Erasmus (foi duas vezes), em Maastricht, na Holanda. Tem a mesma idade que tinha Inês Espada Vieira quando em 1995 partiu para Hamburgo, mas a experiência da estudante Catarina não foi tão feliz como a relatada pela professora da Católica. E critica: “Vendem-nos o Erasmus como algo que já não é.”
“Desde pequenina que queria viver no estrangeiro”, lembra. Passar pela experiência de intercâmbio também estava no topo das suas prioridades, pelo que mal chegou à faculdade foi perceber o que era necessário para se inscrever. No primeiro semestre do 2.º ano do curso de Relações Internacionais lá foi ela. As expectativas eram altas e suportavam-se, sobretudo, em relatos que os colegas lhe faziam — “Vai ser fantástico"; “Vai ser muito fácil"; “Os professores vão entender que és aluna Erasmus”.
Mas não foi bem assim. As aulas eram todas em inglês e o sistema de ensino muito mais exigente do que esperava, apesar de ter escolhido a Universidade de Maastricht precisamente por ser a mais bem cotada nos rankings internacionais que consultou. “Tinha de fazer um paper quase todas as semanas”, conta. O plano de Catarina Neves era ficar um ano no mesmo país. Isso não aconteceu, mas não desistiu. No 3.º ano foi para Brno, na República Checa. Correu melhor, “mas também não foi fácil”, resume. Ainda assim, não menoriza a importância da experiência: “Foi o que me fez sentir europeia pela primeira vez.”
Quanto à razão pela qual os outros estudantes não descrevem mais fielmente a sua experiência, Catarina diz que “há uma grande pressão social para que o Erasmus seja perfeito”. Quando partilhou a sua situação com os colegas, outros acabaram por reconhecer que tinham o mesmo problema. Por isso, hoje a estudante universitária participa em sessões de esclarecimentos e faz questão de dizer: “Se o teu Erasmus corre mal, não estás sozinho.”
Valor da internacionalização
Com o tempo, “o nome do programa Erasmus tornou-se num substantivo de uma coisa”, nota Inês Espada Vieira. É usado para descrever o intercâmbio de alunos que até vêm de outros países de fora da Europa. “Passou a representar um mundo quase ideal, sem fronteiras, onde todos somos colegas. Isso é a Europa concreta.” É por isso que defende que a participação devia ser obrigatória. “Foi o programa Erasmus que trouxe a Europa para mais perto de nós.”
Ao nível da empregabilidade, fazer parte do grupo de estudantes que participou neste intercâmbio também pode ser benéfico. “Os alunos costumam dizer que as empresas valorizam” essa experiência, aponta a professora da Católica. Algo que não sentiu na pele porque fez um percurso académico onde a questão da internacionalização não tem esse peso. Mas não estranha. Um estudante Erasmus é, por norma, “mais predisposto à mobilidade, à negociação, a ouvir os outros”.
Também Catarina Neves reconhece esse valor e admite que a “ideia do empregador em relação ao Erasmus é diferente da do resto da sociedade”, que associa o programa a festas e viagens pela Europa.
Para o futuro, a estudante Catarina espera que o programa seja mais inclusivo. Ao ponto de permitir que estudantes com menos recursos financeiros, com alguma deficiência ou com familiares a cargo, possam beneficiar da experiência.
Essa tem sido precisamente a questão em que se tem centrado o debate sobre o orçamento do Erasmus para o período entre 2021 e 2027. O entendimento entre a Comissão e o Parlamento Europeu é exactamente esse: o projecto tem de ser mais inclusivo. Uma proposta inicial da equipa de Jean-Claude Juncker apontava para a duplicação do orçamento. Passando dos 14,7 mil milhões disponibilizados entre 2014-2020, para os 30 mil milhões. Mas o Parlamento quer mais e propõe que a verba alocada nesses sete anos chegue aos 45 mil milhões.