Quo vadis? Uma reflexão sobre ensinar e aprender em tempos de covid-19
Da próxima vez que caminhar pelo campus do Instituto Politécnico de Beja, onde actualmente lecciono, e der de caras com as multidões de alunos com os olhos postos no ecrã, digo, no chão, não hesitarei em perguntar-lhes: quo vadis?
Uma das reflexões mais prementes que a recente pandemia tem vindo a suscitar é a especificidade da comunicação à distância, com as respectivas consequências para o ensino e a aprendizagem. Concretamente, questiona-se acerca da sua maior ou menor eficácia.
Se tivermos em conta que, como recorda Patrice Pavis (2016), passamos um terço da nossa existência online, o actual cenário poderá, quiçá, parecer-nos menos exótico. Com a agravante de que desta vez não tivemos escolha: fomos literalmente atirados para o bunker digital a partir do qual passámos a ser obrigados a viver e a interagir. Como diria o poeta sueco Thomas Tranströmer, numa minha adaptação tosca do seu terceiro andamento do poema Preludes: o nosso apartamento vazio passou a ser um enorme telescópio virado para o céu. Mantenho vazio, como no original, porque nunca como hoje, na história recente da humanidade (e, sublinho, na história recente), a solidão se tornou um sentimento tão generalizado ou, pelo menos, discutido de forma tão ampla e veemente no espaço público. Será?
O mesmo Pavis observa que é aquela realidade virtual que nos leva a duvidar de toda e qualquer identidade estável ou possibilidade de autenticidade. Bruno Latour, numa belíssima reflexão intitulada Waiting for Gaia (2011), refere, a propósito das alterações climáticas, que a dificuldade desta batalha se prende, no geral, com um falso sentimento de irrealidade pós-natural responsável por aquilo que o autor designa como “dissonância cognitiva”, entre a urgência da acção e a percepção demasiado fragmentada de cada um acerca desta calamidade. E daí a inacção. Também nesta linha, Sarah Bay-Cheng observa que o “teatro”, latu sensu, se tornou o media por excelência da cultura contemporânea. Explica: o mais privado dos nossos espaços, como a área imediatamente defronte aos nossos olhos, ou as nossas próprias células, tornaram-se o mais público dos espaços e aquele no qual actuamos permanentemente, ainda que sem consciência. Qualquer semelhança com as tracking apps não é pura coincidência.
Um debate recorrente nas minhas aulas é o de como a comunicação tem muito mais a ver com presença do que com linguagem. Na primeira aula online que leccionei através do tão afamado Zoom, surpreendi, acho, as minhas alunas ao dizer-lhes que não tínhamos mais como objectivo, este semestre, cumprir o syllabus. Mas, sim, perceber que a presença ou não presença, o estar ou não estar e devidas repercussões na comunicação, linguagem, interacção, logo, na existência e conhecimento de nós e do mundo, devem ser uma escolha. Essa é, considero, a grande lição, já que o que esta (ir)realidade nos veio mostrar, de forma mais ou menos abrupta e violenta, é o que acontece quando não escolhemos. As consequências são por demais evidentes. Serão?
Da próxima vez que caminhar pelo campus do Instituto Politécnico de Beja, onde actualmente lecciono, e der de caras com as multidões de alunos com os olhos postos no ecrã, digo, no chão, não hesitarei em perguntar-lhes: quo vadis? É que não consigo deixar de pensar na subtil analogia fonológica entre covid e a célebre expressão latina Quo vadis?. Para onde caminhamos? Porque, mais do que parar, é tempo de decidir para onde queremos ir, digo, onde queremos ou não estar.