Na Cova da Moura, de cada vez que se vai distribuir comida, volta-se com mais famílias na lista
Associação está preocupada com falta de verbas para apoiar quem precisa. Serve cinco vezes mais refeições. Queixa-se de que autarquia não faz higienização das ruas, como noutros bairros. “Aqui não há nada, é como se fosse um mundo à parte.”
Irene Semedo, 37 anos, abre a porta de sua casa na Cova da Moura, na Amadora. Acabou de perder um dos quatro trabalhos que tinha a limpar escadas em condomínios. Sem contrato, sem recibos, dispensaram-na durante a pandemia. Recebe 360 euros mensais, ao todo. Nascida em Portugal mas sem nacionalidade portuguesa, tem o passaporte de Cabo Verde como documento de identificação. Foi ela quem arranjou as luvas para trabalhar, ninguém se preocupou se usa ou não máscara, diz ao PÚBLICO.
Mãe de seis filhos — o mais velho com 21 e a mais nova com três anos —, vive com o irmão que recebe uma pensão de invalidez. O pai das crianças não dá apoio. Irene Semedo andava a comprar fiado na mercearia. Há três semanas começou a receber refeições da Associação Moinho da Juventude, instituição de solidariedade social que dá apoio ao bairro e que pertence à rede de emergência alimentar da Segurança Social, gerindo uma cantina social, que fornece refeições gratuitas. “Faz uma grande diferença”, diz Irene Semedo a suspirar. “Todos os dias agradeço a esta equipa.”
No saco azul de plástico que lhe entrega Jakilson Pereira, da direcção do Moinho, estão oito refeições, duas para adultos e seis para crianças: o prato principal (peixe no forno com arroz de ervilhas), sopa e sobremesa. “Se não fosse isto eu estava tramada. Não me pagam. Já ando a reclamar há uma semana e graças a Deus ligaram-me hoje para eu ir buscar o meu dinheiro”, desabafa. “Já tive dias em que não tinha nada para comer.”
Desde que começou a pandemia que o número de refeições servidas pelo Moinho de Juventude não pára de crescer. Nelson Gomes, gestor de projectos, conta: de cada vez que vão à rua voltam com novas famílias na lista. Calcula que estejam a servir 340 refeições, cinco vezes mais do que o normal. Antes do estado de emergência serviam um total de 64 refeições, 54 financiadas pela Segurança Social e dez a cargo da associação. Neste momento, carregam 120 sacos, mas há vários que têm três, quatro ou oito doses.
Numa das salas junto ao refeitório estendem-se os sacos com os nomes dos destinatários. Outra despesa extra que agora têm: os recipientes. Dantes, as pessoas traziam as suas próprias caixas, agora, por questões de higiene, têm de usar descartáveis.
Chegam as cozinheiras, Eunice Delgado e Joana Sisse. Lavar mais vezes as mãos, desinfectar, usar máscara, são alguns dos cuidados extra. “Não podemos ter nada cru”, afirma Eunice Delgado. Também mudou o circuito do quotidiano: “É casa-trabalho-casa”, refere esta moradora de Rio de Mouro que agora vai para casa de carro com os colegas para o risco de contágio ser menor.
Últimos a ser contratados, primeiros a ser despedidos
Neste momento são membros da direcção como Jakilson Pereira e Flávio Almada, e trabalhadores com outras funções como Nelson Gomes e Reginaldo Silva, que, protegidos com máscaras, luvas e batas hospitalares andam pelo bairro a distribuir as refeições. Uns pegam nos sacos, batem à porta, entregam a comida, perguntam se está tudo bem, verificam com os mais idosos se tomaram os medicamentos ou se vão às consultas. Outros andam de carrinha a apoiar famílias de outras freguesias.
“Estamos a tentar chegar ao máximo de pessoas, há aumento de pedidos fora. A capacidade de resposta é limitada porque os acordos e valências que tínhamos estão parados, há menos contribuições dos pais. Estamos a tentar não deixar ninguém para trás mas não conseguimos abarcar toda a gente”, completa Jakilson Pereira. Para as 54 refeições, durante os 30 dias, têm um apoio da Segurança Social estimado em cerca de 4 mil euros; agora, a despesa com as refeições, que quintuplicaram, é muito maior. Porém, só quando o mês fechar é que terão os custos certos, diz Nelson Gomes. “Devemos estar a gastar quatro vezes mais com as refeições. E há ainda os gastos que ainda não conseguimos contabilizar, como a electricidade, o gás”, comenta, enquanto caminha pelas ruas do bairro.
No bairro, os cafés estão fechados, deixou de haver vendedores de peixe, legumes e frutas como habitualmente. Há mercearias abertas: numa delas o dono colocou duas botijas de gás à porta para impedir a entrada. Grupos de jovens convivem nas esquinas. As ruas continuam com lixo e entulho acumulado. “Não vêm fazer a higienização ao bairro como noutros sítios na Amadora”, queixa-se Jakilson Pereira. Contactada pelo PÚBLICO, a autarquia não respondeu.
A pandemia veio expor aquilo que já era evidente no bairro, diz Flávio Almada, também da direcção. Maximizou as desigualdades que existem a nível de emprego e da habitação, continua. Na Cova da Moura, que se estima ter entre 5 e 8 mil habitantes, parte das pessoas não tem contrato de trabalho, e há muita gente que ainda não está regularizada. “São os últimos a ser contratados e os primeiros a serem despedidos. Há muita gente com vínculos precários e que foi mandada para casa.”
Medicamentos para idosos, fotocópias para crianças
Há, porém, outros bairros na mesma situação, afirmam.
Também o Banco Alimentar contra a Fome diz estar a receber cerca de mil pedidos diários neste momento, “uma verdadeira loucura”, disse Isabel Jonet à TSF na semana passada. Segundo a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, tem de facto havido aumento de pedidos desta natureza. Prometeu que o Governo vai reforçar a rede através das cantinas sociais e do Fundo Europeu de Auxílio aos Carenciados, passando os apoios de 60 para 90 mil pessoas.
Mas o Moinho da Juventude não se limita a apoiar os cidadãos a nível alimentar. Há muitos idosos que lhes pedem medicamentos. “Aí a solidariedade entra, mas não vive do ar”, afirma Flávio Almada. Neste momento precisam de apoio financeiro, de bens alimentares, de desinfectantes...
Antes da pandemia, a associação tinha um fundo maneio que apoiava este tipo de situações, mas essa verba está a ser consumida pelos apoios à alimentação. São também eles que fazem as impressões das tarefas escolares para as crianças do bairro que não têm computadores, nem impressoras. E são também eles a passar a informação aos idosos. “Lá fora vemos cartazes a avisar as pessoas, informação [sobre o covid-19]. Aqui não há nada, é como se fosse um mundo à parte”, conclui Flávio Almada.
A associação está a recolher donativos que podem ser feitos através de transferência bancária para a conta IBAN : PT50 0010 0000 4755 2090 0011 8, com descritivo cantina social, ou bens alimentares entregues directamente na sede.