Em duas semanas, Rede de Emergência Alimentar recebeu mais de 3100 pedidos de ajuda
A maioria dos pedidos recebidos pela rede de emergência são de pessoas que não tinham qualquer apoio e que, de um momento para o outro, se viram desamparadas. Numa associação da Outurela, o apoio continua mesmo a meio-gás.
O estado de emergência não deixou só as cidades desertas. Dentro de quatro paredes estão pessoas sem empregos, sem rendimentos. E a carência de comida já se nota, diz Isabel Jonet, presidente da Federação dos Bancos Alimentares Contra a Fome. Foi a pensar nesta franja da população mais desprotegida que, com o apoio da associação Entrajuda, criou uma plataforma online para registar novos pedidos de ajuda alimentar e tentar assim responder às carências mais imediatas. Em duas semanas (contabilizados até às 23h de 2 de Abril) chegaram à Rede de Emergência Alimentar 3126 pedidos de todo o país — 223 por dia, em média. Desses, 1.843 (59%) já foram encaminhados.
Lisboa, Setúbal, Porto e Braga são os distritos onde se registam mais pedidos. E Isabel Jonet atribui essa distribuição ao facto de serem cidades onde se dispõe grande parte do rendimento mensal só para a renda da casa. “Estas pessoas enfrentam aquele que é o maior desafio que há nas famílias carenciadas que são as rendas de casa, que aumentaram imenso e que ocupam quase o seu salário total”, admite.
E quem está na linha da frente da perda de rendimentos é precisamente quem já menos tem. “Nós temos muitas mulheres cabeleireiras, empregadas domésticas, que não tinham uma relação laboral estável, por vezes informal. São pessoas que ficaram completamente desamparadas”, diz a responsável.
São pedidos de pessoas que não estavam a precisar de apoio, mas que agora tiveram de o pedir. “As mães de baixos recursos tinham os filhos nas creches, no infantário ou no ATL, e as crianças comiam na instituição. E agora que está em casa, a mãe tem de lhe dar de comer. A própria mãe, muitas vezes, também comia no trabalho. Isto é tão perverso porque é um sistema que se enrola a si próprio”, nota a responsável.
Estes novos pedidos somam-se às 400 mil pessoas que são apoiadas normalmente pelo Banco Alimentar. Os pedidos são feitos através de um site. A equipa da Rede de Emergência Alimentar trata depois de reencaminhar para a associação mais próxima da área de residência de quem faz o pedido.
Perante a pandemia, muitas instituições de apoio social viram-se sem pessoas que assegurassem os serviços e foram também forçadas a encerrar — outras estão a meio gás. Como a rede de apoio social acabou por ficar desfalcada, a Rede de Emergência Alimentar acabou por montar uma rede com as juntas de freguesia. “A rede é no fundo isto: potenciar em cima do que já existe.”
Campanha de Maio em risco
Nos armazéns do Banco Alimentar tudo funciona com aparente normalidade: os monta-cargas andam cá fora a levar mercadorias de um lado para o outro, as associações vão carregando frescos para as carrinhas. Mas há menos voluntários — alguns têm máscaras e luva, outros dispensam o material de protecção.
António Beltrão, de 62 anos e ali voluntário há três, confirma o cenário: “Os voluntários mais velhos estão resguardados em casa. Mas nós continuamos a servir.”
Para já, o Banco Alimentar tem tido “generosos donativos”. A Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) avançou com um donativo de 350 mil euros à Rede de Emergência Alimentar. A Fundação do Futebol, uma organização de responsabilidade social da Liga Portuguesa, deu dez mil litros de leite.
O maior receio de Isabel Jonet é a campanha de recolha de Maio, nos supermercados, onde muita gente contribui, mesmo que seja com pouco. É quase certo que não se realizará e isso é um “problema”, reconhece. “As campanhas representam uma grande percentagem dos produtos secos (massas, arroz, farinhas) que entram nos bancos alimentares.”
“Para já, vamo-nos aguentando”
Por estes dias, a palavra de ordem na associação onde Bruno Ribeiro e José Marques dão uma mão é improviso. É quarta-feira, dia de ir a Lisboa recolher frescos ao Banco Alimentar. Eles tratam de carregar paletes de bananas, cogumelos, laranjas, para a carrinha da associação. Não são eles quem costuma fazer este serviço — o primeiro é tesoureiro, o segundo administrativo —, mas tiveram agora de arregaçar as mangas porque parte dos funcionários e voluntários do Projecto Família Global estão resguardados em casa por serem mais velhos ou por terem crianças a seu cuidado.
Esta associação, que presta apoio no bairro social da Outurela e Portela, existe há mais de duas décadas. Ao longo dos anos, foi acrescentando valências à sua actividade: tem apoio domiciliário a idosos, fornece alimentação, tem o banco alimentar com cabazes para as famílias do bairro, uma creche, um ATL, e até uma clínica dentária social. A pandemia fê-los diminuir os apoios: a creche, o ATL e a clínica fecharam, o resto mantém-se.
“É quase um padrão das instituições todas. Mantêm o apoio domiciliário, as refeições, e em alguns casos aquilo a que chamam banco alimentar, que é a distribuição de sacos de alimentos às famílias”, nota Isabel Jonet.
Com a carrinha carregada, é hora de Bruno e José partirem para a associação para deixarem os alimentos, que serão distribuídos pelas famílias. O projecto Família Global apoia 168 agregados e, para já, não surgiram novos pedidos de ajuda — até porque grande parte das famílias do bairro beneficia de Rendimento Social de Inserção ou então são reformados. “Mas há angústia pela incerteza”, repara a assistente social da instituição, Marisa Cardoso. “As pessoas estavam com medo que deixássemos de fazer entregas.”
Ela e Isabel Ribeiro, também da associação, vão acomodando os bens recebidos para que caibam nos frigoríficos. Naquela tarde, iam começar a distribuição dos cabazes mensais. As prateleiras estão cheias de pacotes de arroz, massas, farinha e açúcar, azeite, óleo, enlatados, salsichas, atum, bolachas. Semanalmente entregam os frescos. “Aqui, apoiamos desde a família de sete, até ao agregado familiar de um”, diz Marisa Cardoso.
No refeitório da associação, perto do meio-dia, acabavam de encher as marmitas para os 38 idosos que apoiam. Mesmo a meio-gás têm continuado a sua missão. Parar é um luxo que eles não têm, caso contrário muita gente ficaria desamparada, diz Isabel Ribeiro. “Para já, vamo-nos aguentando.”