A China, George Orwell e a ‘quinta dos animais’
A sátira e o humor livres, tal como a imprensa livre, são incómodas. Ambas fazem despertar a consciência crítica do ser humano ameaçando a narrativa hegemónica dos governos autoritários.
1. A literatura e a sátira social e política podem incomodar muito os governos autoritários e não apenas pela sua conhecida falta de sentido de humor. Não é por acaso que a liberdade de expressão é um direito fundamental em qualquer democracia, mas é muito pouco apreciada em Estados autoritários onde tende a ser banida. Permite ter acesso a ideias desviantes que corrompem a fé do cidadão na verdade governamental, contrariando a crença no ‘bom governo’.
No século XX, a história mostrou-nos como as grandes utopias sociais e políticas — que pretendiam criar e uma sociedade ‘sem exploração do homem pelo homem’ —, acabaram, na prática, por eliminar a liberdade de expressão e ser opressoras. A supressão da liberdade tornou-se uma medida clássica para manter viva a crença do cidadão no ‘bom governo’, eliminando a dúvida e o cepticismo que a realidade tende a incutir neste. Por isso, a sátira e o humor livres, tal como a imprensa livre, são incómodas. Ambas fazem despertar a consciência crítica do ser humano ameaçando a narrativa hegemónica dos governos autoritários.
É esse o caso das obras do escritor britânico George Orwell (nome literário de Eric Arthur Blair, 1903-1950). O Governo Chinês de Xi Jinping não o aprecia, nem parece gostar que os seus cidadãos o leiam. Tem naturalmente os seus motivos e não são apenas por depreciar o humor britânico. Podemos imaginar que também não gostará muito da série da BBC anos 1980, Yes Minister (Sim, Senhor Ministro), pelo humor corrosivo sobre os mecanismos de poder e a burocracia.
2. Em meados do século XX George Orwell publicou algumas das mais notáveis sátiras sociais e políticas da literatura moderna. Sendo um intelectual e activista de esquerda, a crescente transformação da utopia socialista-comunista num autoritarismo totalitário revoltou-o particularmente. A realidade da União Soviética sob o governo de Estaline foi a sua grande inspiração literária.
Para além da notável distopia 1984 (Nineteen Eighty-Four: A Novel), George Orwell escreveu e publicou em 1945 Animal Farm: A Fairy Story (A Quinta dos Animais, vulgarmente traduzido em língua portuguesa sob o título O Triunfo dos Porcos).
No jornal The Guardian de 24 de Agosto de 1945 o livro era retratado assim: “descrita como um conto de fadas, é uma sátira deliciosamente bem-humorada e cáustica sobre o domínio de muitos por poucos. Na Quinta Manor, os animais chefiados por dois porcos sábios revoltam-se contra a ditadura do Sr. Jones, expulsam-no e passam a administrar eles próprios o local, em benefício único da comunidade animal. No princípio, o esforço é bem-sucedido, mas depois de os porcos experimentam o sabor doce de mandar começaram a degenerar nos maus hábitos da humanidade, bebendo, andando com as patas traseiras e arrogando-se todos os luxos e benefícios da quinta, deixando os outros animais em condições ainda piores do que tinham tido sob o Sr. Jones.”
3. O facto de George Orwell ter escrito um ‘conto de fadas’, leia-se uma sátira social e política, onde os porcos têm um lugar central na perversão de uma utopia igualitária e de justiça social, levanta questões culturais e políticas curiosas.A escolha do porco como protagonista faz sentido num contexto cultural ocidental, pelas suas conotações sociais e morais (negativas). Mas o porco é um animal com conotações muito diferentes nas grandes culturas da humanidade, desde logo na ocidental, na islâmica e na chinesa.
Na primeira, na cultura ocidental, é normalmente apreciado em termos gastronómicos embora, ao mesmo tempo, simbolize de forma pejorativa, como é bem conhecido, algo que em termos higiénicos e morais é sujo ou está impregnado de mácula. No caso do Islão, a conotação negativa é ainda acentuadamente mais forte, pois não só é proibido o seu consumo pela lei islâmica (a Sharia), como o porco é visto como um animal impuro, com o qual o ser humano deve evitar qualquer tipo de contacto.
Todavia, na China, a percepção cultural é completamente diferente e a sua conotação bem positiva. 2019 foi o ano do porco na China e, na tradição histórica e cultural chinesa, esse seria um ano de riqueza e de prosperidade. Pelas conotações culturais que aí tem, o título A Quinta dos Animais / O Triunfo dos Porcos não deveria causar grande apreensão ao Governo chinês, nem levantar receios de perda de controlo da sua narrativa de boa governação.
4. Mas o problema é mesmo o enredo da obra de George Orwell. Como já referido, este deu voz aos animais para retratar as fraquezas humanas — especialmente a traição, a corrupção e a ambição de poder — e demolir o ‘paraíso’ da ditadura do proletariado criado pela propaganda soviética dos anos 1930 e 1940.
Para o governo de Xi Jinping, o problema é que ao lê-lo os chineses do século XXI podem ser tentados a rever-se nesse satírico ‘conto de fadas’ orwelliano, como se pode imaginar por estes excertos de O Triunfo dos Porcos (trad. port., Publicações Europa-América, 2005), onde o poder corrompeu os ideais. “Napoleão (Napoleon), agora nunca era tratado simplesmente pelo seu nome. Era sempre mencionado, em tom formal, como ‘Nosso Chefe, Camarada Napoleão’ e os porcos gostavam de inventar para ele um título como ‘Pai de Todos os Animais’ […]. Tinha-se tornado habitual atribuir a Napoleão os louros por todos os empreendimentos bem-sucedidos e golpes de sorte” (pp. 84-85).
A situação tornou-se absurda pois animais tinham-se precisamente revoltado contra a tirania — do Sr. Jones, proprietário da quinta —, para criar uma sociedade justa e igualitária. Porém o porco Napoleão (Napoleon), movido pela sua ambição de poder, afastou o camarada Bola-de-Neve (Snowball) e estabeleceu uma ditadura (ainda mais) opressora: na parede estava agora só “um único mandamento: Dizia: ‘Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros’. Depois disto, ninguém estranhou que, no dia seguinte, todos os porcos que supervisionavam o trabalho da quinta levassem chicotes.” (p.99).
5. No mundo actual, a narrativa satírica orwelliana com animais acaba por conter uma outra grande ironia. O ano 2019 prometia na China riqueza e prosperidade, simbolizada culturalmente no porco, mas trouxe uma devastadora febre suína africana que terá morto 100 milhões de porcos, ou seja, cerca de 1/3 da produção total chinesa desse sector. Naturalmente que esse foi um motivo de preocupação para o Governo chinês e de descontentamento para a população, pela subida dos preços e escassez dessa carne. Terá sido até um dos motivos internos que mais predispôs o Governo Chinês a fazer o acordo comercial parcial de Janeiro de 2020 com os EUA.
Todavia, os problemas do ano de 2019 não se ficaram pela escassez de carne de porco. Foi no final desse mesmo ano que, primeira primeira vez, surgiu o vírus da covid-19 em Wuhan, que não trouxe riqueza nem prosperidade, nem para China, nem para o mundo. Face a este último caso, são compreensíveis as dificuldades governamentais em lidar com um vírus potencialmente mortal, até então desconhecido, que mostrou ser de fácil contágio humano. Pode também queixar-se de falta de solidariedade internacional no período mais crítico, em particular dos EUA.
Mas o que não é aceitável é o reflexo autoritário de suprimir toda a informação contrária, nem as críticas à sua actuação, recorrendo a mecanismos de censura e de coacção política. Quando livros como Animal Farm (A Quinta dos Animais e filmes infantis como Winnie the Pooh (O Ursinho Pooh) já eram censurados, de uma forma ou de outra, antes da covid-19, não é apenas a falta de sentido de humor de quem governa que está em causa. Há um problema bem mais sério de autoritarismo político que muitos no Ocidente subestimam, por desconhecimento ou conveniência.