Vasco Martins Costa e a DGEMN
Deixo um repto ao Ministério da Cultura: num momento em que a DGPC tem em curso uma ambiciosa, complexa e importante integração de vários arquivos patrimoniais à sua guarda, retomar com renovada força o projecto do SIPA, seria de grande valor público.
Nestes tempos ingratos de pandemia, estamos fechados em casa em contacto permanente com os mais próximos e com o mundo, mas alheados dessa franja cinzenta que fica no meio; aqueles amigos mais afastados com quem nos costumávamos cruzar na rua, no café, em reuniões de trabalho ou de quem tínhamos notícias por outros. Fui assim surpreendido, com duas ou três semanas de atraso, pela notícia da morte do Engenheiro Vasco Martins Costa (1942-2020), que foi o último Director Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Será redutor dizer apenas isto de Vasco Costa, mas foi nesta condição que o conheci e trabalhei de perto durante seis anos.
Quando em 1997 iniciei a minha colaboração na DGEMN, fui desafiado por Margarida Alçada, Directora de Serviço de Inventário e Divulgação, para estudar e adaptar o projecto inglês Buildings at Risk. Assim nasceu o projeto Carta de Risco do Património Arquitetónico que desenvolvi com Laura Figueirinhas entre 1997 e 2000, altura em que se iniciou a colaboração com outro projecto inovador, o Inventário dos Conjuntos Urbanos, coordenado por Margarida Tavares da Conceição. Em conjunto, entre 1999 e 2002, fizemos o levantamento de vários edifícios e centros históricos em Cabo Verde (Cidade Velha, Santiago), no Brasil (Sobral, Ceará e Santana de Parnaíba, São Paulo), em Portugal Continental (mais de uma dezena, de norte a sul) e na R.A. da Madeira (Funchal). Tudo isto se deveu a uma nova visão de Vasco Martins Costa para a DGEMN, ancorada na informação e na divulgação do património: conhecer é proteger.
A antiga Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais foi uma das mais antigas instituições da administração central, integrada na orgânica do Ministério das Obras Públicas (MOP). Fundada em 1929 e extinta em 2007 foi, durante décadas, a principal instituição responsável pela conservação do património construído em Portugal. Porém, caso raro de longevidade política, ao longo de quase 80 anos, teve apenas quatro directores-gerais: Henrique Gomes da Silva (1929-1960), José Pena Pereira da Silva (1961-1976), João Miguel Caldeira de Castro Freire (1977-1989) e Vasco Martins Costa (1989-2007). Coube-lhe assim dirigir a DGEMN, durante quase duas décadas, num período em que o Ministério da Cultura assumia crescente protagonismo. Quem viveu esses anos na instituição lembra-se da rivalidade que se sentia então entre a DGEMN e o IPPAR, muito por culpa de uma administração pública que incluía dois organismos com actuação no mesmo sector. O MOP (que foi sucessivamente mudando de acrónimo, consoante a inclusão de novas áreas de governação, dos transportes às comunicações) era o que se chamava então um “superministério” com um orçamento de milhões, destinado às grandes obras públicas: autoestradas, a nova ponte sobre o Tejo. Neste quadro, a ‘velha’ DGEMN era uma dependência de segunda linha, uma herança do Estado Novo à qual se destinava um magro orçamento anual para restauro de igrejas, castelos (Monumentos) e instalação de serviços públicos (Edifícios). Pelo contrário, o sector da Cultura (que subia a Ministério e descia a Secretaria de Estado, consoante os governos de esquerda ou direita) impunha-se, fazendo do património cultural a sua principal bandeira.
Vindo do Instituto Nacional da Habitação e recém-chegado à DGEMN, nomeação que o surpreendeu, Vasco Martins Costa ficou inicialmente desanimado com uma instituição envelhecida, no seu quadro técnico e na sua forma (e ritmo) de actuação. Cedo terá percebido que as quatros direcções regionais (Lisboa, Porto, Coimbra e Évora) e as suas cerca de 200 intervenções anuais não seriam suficientes para maior atenção da tutela. Não obstante a importante função que desempenhavam por todo o país (e que hoje constitui um flagrante vazio na actuação patrimonial pública), essa era afinal a herança que já não despertava interesse político. Ao longo de vários anos, Vasco Costa bateu-se por um reforço do orçamento anual. Costumava dizer: “Dêem-me apenas ‘um quilómetro de autoestrada’ e faremos intervenções por todo o país que valem certamente muitos mais votos.”.
Ciente desta limitação, a partir de 1992-93, Vasco Costa aposta num projecto de inventário, coordenado por Margarida Alçada, que pretendia recolher e sistematizar o conhecimento sobre os bens culturais construídos (arquitectónicos, arqueológicos e paisagísticos) em Portugal e ilhas, recorrendo para isso a uma nova geração de historiadores da arte (Paula Noé, Ana Paula Figueiredo, Rosário Gordalina, Filomena Bandeira, Sofia Diniz...) que, divididos por diferentes áreas temáticas e territoriais, começam a desenvolver fichas de inventário, acompanhadas de fotografias e desenhos. Ao longo da década de 1990, recorre-se de forma sistemática a especialistas em todo o país e o corpo do inventário ganha dimensão, numa altura em que os computadores pessoais entram na vida quotidiana e a informática disponibiliza as primeiras soluções de bases de dados, digitalização e visualização. Assim, recorrendo a outra geração de recém-licenciados na área dos arquivos (João Paulo Machado, Cátia Martins, João Nuno, Manuela Portugal…), decide-se pela inventariação de todo o espólio gráfico, fotográfico e textual que a DGEMN havia produzido desde a sua fundação.
Foram deste modo ‘desenterrados’, literalmente, quilómetros de prateleiras com desenhos e processos administrativos esquecidos nos sótãos do torreão oriental da Praça do Comércio (sede dos serviços centrais), recuperando-se um património riquíssimo sobre a actuação de várias gerações de arquitectos e engenheiros (António do Couto, Baltasar de Castro, Luís Benavente ou Raul Lino) nos mais importantes monumentos nacionais, nas pousadas e em inúmeros outros equipamentos públicos. Não será exagerado dizer que este foi, e continua a ser (duas décadas passadas), o mais importante espólio sobre o património construído nacional resgatado ao esquecimento e disponibilizado à consulta pública. Os desafios técnicos e tecnológicos foram inúmeros: da forma de restaurar e arquivar correctamente os originais (película, papel fotográfico, chapas de vidro ou papel antigo), à digitalização de suportes excepcionais (o alçado original da Assembleia da República tinha cerca de sete metros de comprimento!). A tudo isto, Vasco Martins Costa respondeu com a energia, a coragem e o optimistmo de quem assume desafios, procurando soluções em Portugal e lá fora e sabendo convencer as sucessivas tutelas da importância deste trabalho, com o apoio de Elísio Summavielle, seu sub-Director-Geral.
Em meados da década de 1990, o volume de informação era tal que se procedeu à aquisição e adaptação de um antigo forte militar em Sacavém, com projecto de Luísa Cortesão, para sede do projecto de Inventário do Património Arquitectónico. Sob a direcção de João Vieira, a partir de 1997, o serviço de Inventário aqui sedeado deu origem a uma das mais inovadoras e pioneiras soluções de arquivo de arquitectura em Portugal e na Europa, admirado e visitado pela sua organização técnica e científica (salas de tratamento de fotografia e papel, centenas de metros de armários-arquivo com desenhos originais, catalogados e deitados sob papel acid-free, em salas com humidade e temperatura controlada), bem como pelas soluções tecnológicas (dezenas de milhares de documentos e peças desenhadas digitalizadas e acessíveis através de grandes bases de dados ligadas a servidores para consulta remota, quer online, quer presencial na sala de consulta pública). Hoje, que temos o mundo na palma da mão num simples telemóvel, isto poderá parecer normal, mas tudo isto foi desenvolvido há mais de vinte anos. Cá em Portugal.
O seu empenho e investimento no projecto do Inventário, com reconhecido mérito nacional e internacional, teve no entanto custos internos, sendo objecto de desconforto e críticas por parte de outros departamentos e, sobretudo, das direcções regionais que se viam assim secundarizadas, quer nos meios como no protagonismo institucional. Não creio que Vasco Costa o tenha feito de forma premeditada, antes como aposta numa forma de relevância (ou mesmo sobrevivência) institucional, antecipando aquilo que eram já os primeiros indícios da futura extinção da casa. Lutador e persistente pugnou sempre pela sobrevivência da instituição e se algum erro cometeu (em minha opinião) foi o de tentar uma última vida fora da ‘casa histórica’ das Obras Públicas, quando promove a transferência da tutela da DGEMN para a esfera do Ministério do Ambiente. Acabou por ser uma decisão que se pagou caro pois, no âmbito do PRACE, o inevitável fim da DGEMN resultou no seu desmembramento entre o Ministério do Ambiente (IHRU), o Ministério da Cultura (IGESPAR) e as Direcções Regionais de Cultura.
Talvez por isso fosse pouco saudosista, sendo o primeiro a evitar conversas alargadas sobre os tempos da antiga DGEMN. Nos últimos anos, reformado, dedicava-se com entusiasmo a promover ‘energias alternativas’, não as ambientais, mas as humanas. Creio que frequentou alguns cursos especializados no Japão e nos Estados Unidos e tornou-se um acérrimo defensor da importância de canalizar ou orientar a energia positiva do corpo no tratamento de problemas de saúde. Alguns dias por semana tinha um consultório onde disponibilizava ajuda a todos quantos o procuravam, com bons resultados, segundo me disseram. Não cobrava dinheiro.
Vi-o pela última vez há menos de um ano, estava como sempre o conheci, cortês, ponderado, bem-disposto e entusiasmado com os seus tratamentos. Perguntou-me se conhecia alguém com risco de perder um membro, pois acreditava que conseguiria evitar a amputação. Gostaria de o tentar, pelo menos. Continuava a gostar de desafios exigentes, como fizera durante toda a sua vida profissional. Há poucas semana sentiu-se mal e foi ao médico, era grave. Dias depois na Fundação Champalimaud confirmaram que era terminal e seria rápido. Creio que teve tempo de se despedir dos seus mais próximos e queridos.
Numa altura em que muitos da sua geração vão desaparecendo, segundo a lei natural da vida, fica-nos a memória de um homem sério, íntegro e que deixou uma obra importante nos anos que esteve à frente da DGEMN. Seria injusto e errado considerar que, desses anos, apenas o projecto do SIPA é digno de nota. São inúmeras as intervenções em edifícios históricos por todo o país que deixaram a marca de grande qualidade da casa, por parte de uma importante geração de arquitectos e engenheiros do património (José Fernando Canas, Jorge Brito e Abreu, Victor Mestre, Ângelo Silveira, Pedro Vaz, Maria Fernandes, José Filipe Ramalho, João Carlos Santos, entre muitos outros). Mas permitam-me sugerir que, no âmbito da sua obra, há uma ‘peça solta’ que merece ainda atenção: o SIPA.
Actualmente gerido pela DGPC, o Sistema de Informação para o Património Arquitectónico sedeado no Forte de Sacavém tem um espólio documental composto por mais de 7 quilómetros de prateleiras de processos administrativos, 500 mil peças desenhadas e 300 mil fotografias de edifícios e monumentos nacionais, a que acresce o Arquivo de Documentação Fotográfica que integra um milhão de imagens de diversos espólios de bens móveis e imóveis provenientes de museus e palácios nacionais, bem como o acervo particular de vários arquitectos importantes (Frederico George, Pardal Monteiro, Daciano Costa, Chorão Ramalho, Cotinelli Telmo, Carlos Ramos, Ribeiro Telles, Caldeira Cabral, Gonçalo Byrne…). Ao longo de mais de uma década, foi objecto de contínuo esquecimento e subfinanciamento, lutando hoje contra uma gravíssima falta de quadros técnicos e de meios financeiros, enfrentando o cenário de encerramento ao público. Deixo pois um repto ao Ministério da Cultura: num momento em que a DGPC tem em curso uma ambiciosa, complexa e importante integração de vários arquivos patrimoniais à sua guarda, retomar com renovada força o projecto do SIPA, seria de grande valor público e uma justa homenagem a Vasco Martins Costa.