EUA estudam hipótese de fuga acidental do vírus de um laboratório em Wuhan
As declarações do presidente dos EUA esta semana lançaram novas suspeitas sobre uma eventual “fuga” acidental do coronavírus que estaria a ser estudado num laboratório em Wuhan, mas não há ainda qualquer prova de uma ligação.
Por esta altura, já são muito poucos os cientistas que duvidam da origem natural do novo coronavírus. A análise dos genomas de múltiplas amostras do vírus reuniu provas suficientes sobre a sua origem natural na vida selvagem, provavelmente de morcegos. Os estudos derrubaram assim a teoria de conspiração que surgiu no início da epidemia sobre uma arma biológica fabricada no laboratório. Mas há uma nova versão que começou a circular nos meios de comunicação e que iniciou uma nova discussão na comunidade científica. Pode o SARS-CoV-2 ser um vírus natural que estava a ser estudado e que “escapou” acidentalmente das instalações de um laboratório em Wuhan, na China?
Na passada quarta-feira, o Presidente dos EUA, Donald Trump, foi questionado pelo correspondente da cadeia de televisão Fox News sobre uma investigação associada a falhas de segurança num laboratório de investigação em Wuhan. A conhecida relação “de confiança” entre o canal da Fox e Trump levanta inevitáveis suspeitas sobre a “inocente” pergunta. Na altura, Donald Trump respondeu que não iria falar sobre o assunto. Mas, abordar a questão foi o suficiente para ressuscitar a questão da “culpa” da China na origem deste coronavírus. O assunto voltou ao debate político e a discussão reacendeu-se na comunidade científica.
Num artigo de opinião publicado a 14 de Abril no jornal Washington Post, o comentador Josh Rogins (especialista em política externa e segurança interna) escreve que, dois anos antes desta pandemia, alguns representantes da embaixada dos EUA visitaram várias instalações de investigação chinesas na cidade de Wuhan e enviaram dois avisos oficiais a Washington sobre a segurança inadequada num dos laboratórios. Era do conhecimento público que o laboratório investigava coronavírus identificados em morcegos.
Dito assim, pode parecer que é demasiada coincidência para ignorar. No entanto, vários investigadores já vieram publicamente explicar um dado que pode ser importante: a investigação sobre coronavírus e mais precisamente sobre os vírus que saltam dos morcegos para os humanos é uma actividade que tem sido incentivada na China, sobretudo após o problema com a SARS em 2002 (que também teve os morcegos como origem natural). Por outro lado, sabe-se também que este tipo de estudos e experiências acarreta riscos e que os representantes da embaixada dos EUA terão alertado para falhas de segurança.
Mas isso não é suficiente para provar que o novo coronavírus que se tornou hoje uma pandemia no mundo tenha sido estudado em Wuhan, nem muito menos que tenha saído por acidente do laboratório. “Não há provas de fuga de um laboratório”, escreveu Andrew Rambaut, especialista em microbiologia da Universidade de Edimburgo, num e-mail citado num outro artigo do Washington Post sobre o mesmo tema. “O vírus é exactamente como um vírus que esperamos ver em populações de morcegos selvagens; vírus semelhantes saltaram de animais para humanos no passado, então não vejo razão para especular mais sobre isso”, acrescenta o especialista que escreveu um dos artigos sobre a origem natural do vírus, publicado na revista Nature Medicine a 17 de Março.
Numa outra notícia publicada pela BBC sobre este novo rumor é explorada a questão da denúncia sobre as falhas de segurança detectadas no laboratório em Wuhan. Afinal, que falhas eram essas? “A resposta é que não sabemos quais são a partir da informação divulgada pelo Washington Post”, refere a BBC num artigo em que cita Filippa Lentzos, uma especialista em biossegurança no King’s College em Londres, no Reino Unido. É que, argumentam, há vários tipos de possíveis falhas de segurança numas instalações de investigação deste tipo e que, segundo a cientista, podem incluir questões como “quem tem acesso ao laboratório, a falta de acções de formação e treino de cientistas e técnicos, procedimentos para manutenção de registos, sinalização no interior das instalações, listas de inventário de patógenos, práticas de notificação de acidentes, procedimentos de emergência”.
A propósito do tema dos acidentes nesta área de investigação, o artigo da BBC recorda dois exemplos não muito distantes que aconteceram nos EUA. “Acidentes acontecem. Em 2014, frascos de varíola esquecidos foram encontrados numa caixa de cartão de um centro de investigação perto de Washington. Em 2015, os militares dos EUA enviaram acidentalmente amostras vivas de antraz em vez de esporos mortos para nove laboratórios em todo o país e para uma base militar na Coreia do Sul”, lembra a BBC.
A CNN também noticiou que o governo dos Estados Unidos está a estudar a possibilidade de que o novo coronavírus se tenha espalhado para a comunidade a partir de um laboratório chinês e não de um mercado, de acordo com várias fontes ligadas a este processo que advertem, no entanto, que é prematuro tirar conclusões.
Origem natural
As dúvidas sobre a origem deste novo coronavírus surgiram logo no início da pandemia. Em Janeiro ganhou força (sobretudo nas redes sociais) a teoria da conspiração que levantava a hipótese de este vírus ter sido fabricado num laboratório como arma biológica. Esta teoria foi criticada e repetidamente refutada por vários artigos científicos, que concluíram que o vírus tinha uma origem natural e tinha saltado de um animal para os humanos, muito provavelmente de morcegos. “Ao comparar os dados disponíveis da sequência do genoma para estirpes conhecidas de coronavírus, podemos concluir firmemente que o SARS-CoV-2 originou de processos naturais”, disse, por exemplo, Kristian Andersen, geneticista da Scripps Research, na Califórnia, em declarações à BBC.
Num artigo publicado na revista The Lancet, em Fevereiro, um grupo de cientistas assinava uma declaração em que condenava fortemente “as teorias da conspiração, sugerindo que a covid-19 não tem uma origem natural”. “Cientistas de vários países publicaram e analisaram genomas do agente causador (SARS-CoV-2) e concluem, esmagadoramente, que este coronavírus teve origem na vida selvagem, como muitos outros patógenos emergentes. Isto é, aliás, apoiado ainda por uma carta dos presidentes das Academias Nacionais da Ciência, Engenharia e Medicina dos EUA e pelas comunidades científicas que representam. As teorias da conspiração não fazem nada além de criar medo, rumores e preconceitos que comprometem nossa colaboração global na luta contra este vírus”, defendem os investigadores.
No entanto, a nova questão sobre uma fuga acidental levanta outro tipo de dúvidas que conseguem coexistir com esta conclusão de estarmos perante um vírus natural. Poderia este vírus natural estar a ser investigado no laboratório e ter acidentalmente saltado para fora das instalações atingindo a comunidade? A verdade é que não há, até à data, qualquer tipo de prova concreta que relacione directamente a actividade de investigação dos laboratórios em Wuhan com o novo coronavírus SARS-CoV-2.